quinta-feira, 31 de agosto de 2006

"Gentileza é fundamental"

“A cidade é tanto do mendigo
Quanto do policial
Todo mundo tem direito à vida
Todo mundo tem direito igual (...)
Boa noite, tudo bem, bom dia,Gentileza é fundamental”
(Arnaldo Antunes & Lenine – “Rua da Passagem (Transito)”, do álbum Na pressão)

José Datrino foi um paulista que chegou a ser dono de uma empresa de transportes de carga, mas andou ouvindo vozes e largou tudo para virar "profeta". Professava um pouco mais de gentileza entre as pessoas. Por isso, ficou conhecido como Profeta Gentileza. Sua missão profética durou 35 anos, morreu em 1996. Com 20 anos chegou ao Rio de Janeiro.

O Rio de Janeiro um dia foi a sede do Reino no Brasil. Europeus, a nova elite brasileira, tentavam se dar bem no Novo Mundo, exibindo toda sua pompa, elegância e bons modos pelas primeiras ruas cariocas. Ditavam padrões de comportamento e refinamento iguais à da elite que ficara para trás e com a qual apenas sonhavam em fazer parte. Tudo o que era sofisticado, fino e copiado vinha do/ pro Rio.

O Rio também já foi a capital federal. Os funcionários públicos mais bem remunerados também estavam aqui. O centro das atenções também. A melhor segurança…

Essa cidade um dia foi a mais bonita do país, seu cartão de visitas. Mas um dia o Brasil resolveu mudar. A capital foi para o interior. Os turistas descobriram outros pontos do país tão ou mais interessantes quanto a cidade maravilhosa. E o peso de ser o melhor e o pior do Brasil saiu dos ombros cariocas. Nossas ruas estão mais sujas, mais cheias. Até o nosso crime organizado, que já foi o mais violento da federação e um dos mais ferozes do mundo, perdeu a pose.

A cara do carioca também mudou. Depois de tanto tempo de supremacia nacional, o Rio decadente continua recebendo gente de toda parte. Gente boa e gente má. Gente feia e gente bonita. O carioca real, não a juventude bronzeada da zona sul que corresponde a uma magra fatia da população, também tem cabeça chata, pele escura e olhos claros ou pele clara e cabelo duro.

Seus modos também não são mais os mesmos. Do Brasil Império aos dias de hoje, o refinamento foi definhando com o passar dos planos econômicos, em ritmo vertiginoso e inversamente proporcional ao grau de escolaridade. Faculdades e templos religiosos brotam do chão como cogumelos mágicos trazendo uma falsa expectativa de status e paz de espírito.

Todos os dias, ônibus interestaduais despejam aqui pessoas que, como o Profeta Gentileza, chegam em busca do Rio que se vê nas novelas, se misturam como gotas ao mar de gente que inunda a cidade, sem planejamento, sem emprego e fora dos padrões de etiqueta (contudo, sem as más intenções) européias de nosso colonizadores. São pedras brutas, sem tempo para lapidação. Vêm erguer edifícios, cuidar de suas portarias. Os novos colonizadores fundam novos povoados, vilas ou favelas, como queiram chamar. Incham uma estrutura para lá de saturada.

Um dia não precisarão mais deixar suas cidades, virão a passeio ou contribuir, assim como Gentileza, com novas idéias, conceitos humanistas e mais leveza à paisagem carioca. Por enquanto, o trabalho é pesado, braçal e a vida, muito dura. Enquanto as coisas não melhoram, um pouco mais de gentileza com e entre eles já suavizaria o peso da cruz nas costas de todos que habitam a cidade maravilha. Nos ônibus, nos trens, nas ruas, nos bares, nas praias, em todos os lugares onde velhos e novos “cariocas” se misturam. Afinal, “gentileza gera gentileza”, como diria o profeta paulista. E “gentileza é fundamental” como canta Lenine, o músico pernambucano. Ambos exemplos de migrantes adotivos e adotados que queremos para nossa cidade. Só o melhor do Brasil, porque o pior já temos de sobra.

Ficou curioso sobre o Profeta Gentileza? http://www.gentileza.org.br/
Essa coluna foi ilustrada pela arte de Anderson Ferraro. Thank you, Sir.

segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Janela indiscreta

Noite de sexta-feira, no 402. Nada de pedidos por telefone. A noite está fresca. Foi pessoalmente ao restaurante pedir seu yakisoba clássico. O atendente, com forte sotaque nordestino, porte franzino, aparência humilde, mas uma eficiência e fluência verbal estonteantes, se esforçava para atender o telefone e registrar pedidos, fazer contas, preparar trocos... Uma chata liga. Nunca deve ter ouvido falar em comida chinesa. O coitado tem que recitar todo o cardápio e ainda explicar do que se trata cada prato. Quando acabou de explicar, a chata desligou sem fazer um pedido sequer. De lados opostos do balcão, se olharam e riram. Riram muito. – Eu não acredito, ela te fez falar isso tudo e não pediu nada? E ainda está rindo? Você é um santo!

Madrugada de sexta-feira no 102. Aquele dia foi duro, como todos os outros. As mesmas ruas, as mesmas caras, o mesmo ritual. Há muito tempo nada mudava na vida daquela mulher que não tinha muito do que se queixar. A casa estava em ordem; as contas, pagas em dia; o trabalho, estável; a vida, sem muita pressão; comida, na mesa; todos, vivos. Também não tinha muito o que comemorar. Vivia uma vida em que absolutamente nada acontecia. As novidades se limitavam a um acidente de trânsito num dia; uma briga na vizinhança, noutro; pendengas familiares; descontos no contracheque. Os 20 anos haviam sido frenéticos, a única explicação para tamanho marasmo aos 30. Já seria a hora de esperar a morte chegar? Alcançara a idade avançada precocemente?

Almoço de sábado no 602. O macarrão ao sugo esfriava no prato. O cheiro do feijão da vizinha fazia sua barriga roncar. O aspecto do macarrão do dia anterior fazia seu estômago se contorcer. Precisava respirar devagar ou seu esôfago saltaria pelas córneas indo fazer companhia aos fiapos de macarrão que boiavam no molho vermelho ralo e frio. Um nojo. Lembrou da comida gordurosa do restaurante próximo ao escritório. Torcia para a segunda-feira chegar logo. Ao menos a lembrança do almoço no meio do expediente, trazia algum bem-estar para o começo do final de semana que se arrastaria impiedoso como as gotas que sempre caem da torneira do banheiro ao lado do quarto de um insone desesperado com as primeiras luzes do novo dia.

Sábado à noite no 602. Todos os apartamentos daquela coluna estão apagados. No dele, apenas a luz do monitor está acesa. Está há mais de duas horas num chat. Não conseguiu manter um diálogo por mais de dois minutos com nenhuma mulher. Devem perceber seu desespero. Sua ânsia. Seu pavor de enlouquecer ou morrer sozinho naquele quarto. O tempo está passando. Sente o peso do tempo a cada minuto e sua mente é um disco arranhado repetindo o mesmo mantra triste a cada fração de segundo. Ouve um estampido próximo. Abaixo. Erra os botões do teclado com o susto. Parece um disparo. Suas pernas doem ao tentar se levantar para ir à janela. Desiste. Tenta conter a respiração ofegante, talvez pelo susto, talvez pelo esforço de tentar se levantar. Fica em silêncio, mas nenhum som, a não ser o das televisões dos vizinhos, se ouve. Volta a digitar.

Sábado à noite no 102. Cansou. Não suportava mais. Esperava acontecimentos. Então, quando acontecia, era festa em outro apartamento... Nada como um dia após o outro para perceber que nada mais estava guardado para ela. As surpresas da vida vieram todas. Não havia mais paciência dentro dela. A rotina e o tédio haviam se instalado de mala e cuia e corroíam seus ossos, órgãos e tecidos. Desta vez, ela seria a novidade para outras pessoas como ela, que dependiam das desgraças alheias para ter o que contar. O pequeno revólver de seu pai – deixado sob sua guarda por ser a pessoa mais calma e confiável da família – foi carregado e disparado. Acabou tudo. O tédio, a rotina e qualquer chance da novidade que insistia em não aparecer e talvez até já tivesse dado meia volta, é bem verdade. Pouco tempo depois, os paramédicos desistiriam de reanimá-la. Chegaram tarde. Deviam ter tentado em vida.

Sexta-feira à noite no 402. Seu pedido ficou pronto. Voltou para casa. Ao abrir o pacote. Além da caixinha de comida, dos palitos, do biscoito da sorte, havia uma outra caixinha com dois rolinhos primavera e molhos agridoces. Devorou-os. Pegou o telefone. O atendente respondeu. – Olha, os rolinhos, foi muita gentileza sua, estavam deliciosos. Muito obrigada. – Você gostou? Que bom. Volte sempre.
Ele tinha se comovido, ninguém jamais havia reparado no seu esforço em atender bem clientes chatos. Teve vontade de agradecer a atenção. Por isso, a cortesia.

A ilustração que anima esta coluna é de Wagner Paula. Thanx, man!

quinta-feira, 10 de agosto de 2006

Uma festa punk

"Armados das razões que a discussão sobre a razão sempre cria, os jovens, porque eram sobretudo eles quem realizava as acções mais espectaculares, teriam podido fundamentar com mais convicção o seu protesto, tanto na escola como na rua, e na família, não esqueçamos. Pode-se discutir se os jovens, munidos de razões, teriam dispensado a acção direta, caso em que se concluiria pelo efeito apaziguador da inteligência, ao contrário do que tem sido convicção desde o princípio dos séculos."
(José Saramago, em Jangada de Pedra)

Quase tropecei num "ex" dos tempos de faculdade na saída do filme Edukators. Ele nunca foi muuuito engajado, mas, vá lá, era bem bonitão. Empolgadíssima, tinha acabado de identificar meus heróis na telona. Muito mais do que em qualquer adaptação dos quadrinhos pela Sétima Arte, aqueles jovenzinhos da trama eram tudo o que eu queria ter sido quando era mais nova.

"E aí? Maneiro o filme, né?" Eis que o Bonitão resolve jogar água na fervura. "Hum... interessante." "Como???" "Pois é, meu pai sempre me dizia..." Foi então que veio a pérola: "Não ser idealista na juventude é alienação, ser idealista depois dos 30 é idiotice". CHOQUE! Não só pela frase. Por quem a disse. “Vou ali e já volto”, dei as costas e fui embora aos risos.

Admito que o sangue vem correndo cada vez mais devagar e menos quente pelas veias. Vários fios de prata já enfeitam a antes negra grinalda. A vista está cansando e o fôlego já não é mais aquele, olha a cara dele... Mas a desobediência permanece, contra o sistema, contra a política, contra a polícia, contra os bandidos e, se nada resolver, contra o síndico, que seja. Contra qualquer autoridade autoritária. Porque se nunca foi proibido proibir, ainda é rebelde quem se rebela e grita. O “quem sabe faz a hora”, de ontem, virou o “paz sem voz, não é paz é medo”, de hoje.

É verdade que o mal se prolifera mais rápido e com mais eficiência amparado na conivência omissa e silenciosa da maioria, que não abre a boca para reclamar do tanto de coisa ruim que vê por aí. Mas respiro aliviada quando vejo a minha geração “fazer comédia no cinema com as suas leis”. Somos burgueses sem religião. Gostamos de Adidas, crescemos nos reunindo nos Hollywood-Rocks da vida, nosso colesterol cheira a BigMac, bebemos Coca-cola, mas nosso Kennedy favorito se chama Jello, e não Bob ou John, e nossos filmes são pra lá de punks. Não necessariamente na estética, mas na alma (e no orçamento!). Espetamos sim, com poesia. Bicho de sete cabeças, O homem que copiava, Caramuru, Cidade de Deus são apenas alguns exemplos de uma malandragem que cresceu do jogo de cintura de quem não (sabia se) podia falar, tendo muito pra dizer. E, pelo andar da carruagem, vem muito mais por aí.

Não tomamos as ruas, não fazemos passeatas, não quebramos vitrines. Vamos para escola estudar cinema, design, moda, propaganda, marketing. Temos várias décadas pela frente ainda para usar o sistema a nosso favor e influenciar pessoas. Pode ter sido uma decepção, mas o candidato que foi da esquerda na nossa juventude é o presidente agora. Nosso nível de instrução é maior do que o dos adultos na faixa dos 30 e 40 anos das gerações anteriores. A mídia tem olhado mais para os jovens de hoje do que costumava olhar no passado. Abriram esse caminho colocando a gente na escola cada vez mais cedo. E, até hoje, não deixamos de lado os bancos universitários nem para trabalhar. As mulheres, em especial, conciliando sua educação, a dos filhos, o trabalho e a casa.

Estamos no meio do caminho entre os que não dispunham de muita informação e os que têm informação demais e não sabem usá-la ainda. Minha geração tem a faca e o queijo na mão e tem se servido muito bem. Quer um pedacinho?

A arte que melhora esta coluna é de Wilson Domingues. Thanx, Wilbor!