quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Uma imagem no natal

“Eu não caibo mais nas roupas que eu cabia,
No espelho essa cara não é minha
Os anos se passaram enquanto eu dormia
E quem eu queria bem me esquecia...”
(Nando Reis/ Titãs)



No meio daquela multidão, distraidamente, lembrava dos primeiros momentos do dia, quando seus novos problemas começaram. Como acontecia todos os dias, levantou-se da cama e quase sem abrir os olhos, parou em frente ao espelho, pegou a escova, colocou nela a pasta de dente e começou a escovar. Ao encarar o espelho, deparou-se com a imagem de alguém estranho. De uma hora para outra, não se reconheceu mais. O que a imagem refletida no espelho tinha a ver com a pessoa que sentia sob a pele, por trás dos olhos, em cima dos pés? Quem disse que essa pessoa sou eu? – a pergunta não se calava, voltava a cada passo no meio da multidão enlouquecida pelas compras de natal.

Esta é uma época triste. Notou que sempre sentia uma ponta de depressão. Ela ia crescendo crescendo... até lembrar-se dos presentes. No princípio, a expectativa de receber os que havia pedido e o consolo com os que ganhava. Mais tarde, na idade adulta, a preocupação com os que teria de comprar para agradar os outros. A prática de presentear não era somente uma maneira de enriquecer comerciantes – como pensava desde a adolescência rebelde – e gastar mais do que era pago no décimo terceiro salário.

A troca de presentes servia para encobrir o aperto que sufocava o peito e deixava um nó na garganta. A preocupação com as compras distraía os pensamentos que insistiam em cutucar sobre o significado da data irracionalmente festiva. Acreditava que o nascimento e a história do personagem principal eram parte de uma lenda e que, como todas as outras, tinha a sua função didática.

Mas há 2000 anos, de geração em geração, ela vem sendo contada, recontada, repetida e pregada como verdade sem que realmente se aprenda algo com ela. Sem que se aproveite o seu sentido real. Sem que se use sua trama como um exemplo. Essa era sua principal preocupação até aquela manhã. “Mais essa agora! Mais um motivo para me tirar o sono.” Quem poderia explicar como voltaria a acreditar que a imagem que via refletida nos espelhos, nos vidros dos carros parados nas calçadas, copiando seus movimentos era realmente sua?

Não lembrava daquela pessoa, nem como chegara até ali – o peso, a altura, a cor, o corte de cabelo. Definitivamente, a imagem não correspondia ao que sentia. Não era como a maioria das pessoas, que não identificavam a imagem refletida com o que gostariam de parecer – o astro do cinema, a celebridade da vez, a top model na capa da revista. Apenas não conhecia a pessoa que via. Conhecia sim, um pouco, a voz que ecoava dentro de sua cabeça, a pessoa que sentia o coração acelerar diante da paixão da sua vida, as lágrimas descerem quentes pela pele do rosto quando se sentia rejeitada, a barriga roncar ao passar pela porta da padaria de manhã e perceber o cheiro do pão fresco entrando pelas narinas.

E aquela pessoa no espelho? Era preciso arranjar uma personalidade para ela ou era a personificação não-autorizada de todas aquelas sensações e da voz que ecoava dentro da cabeça? Ou seria ainda a maneira como os outros o viam? É certo que o que dizem ou pensam de você não é o que você é de verdade. Mas, então, quem diabos era a pessoa no espelho?

Meia-noite. Subir com todos aqueles pacotes não foi nada fácil. As crianças da família estão indóceis pela troca de presentes. Todos reclamaram do seu ar desligado este ano. Algum problema no trabalho? Por que ainda estava só? Não ia se casar? Queria tanto mais um netinho... Quer mais um pedaço de Chester? Passa a farofa, por favor.

Evitou experimentar as roupas que ganhara para não ter que encarar aquela figura estranha no espelho novamente. Enquanto pensava que mais um ano acabava e os tais ensinamentos da festa que acabara de acontecer passavam despercebidos, lhe ocorreu que não encontraria sua alma gêmea se não encontrasse sua própria alma vagando por aí, sem uma máscara que lhe coubesse. Depois disso, dormiu.

domingo, 17 de dezembro de 2006

Bah, tchê que língua é essa?

Várias vezes flagrei minhas amiguinhas da escola me olhando com um ar desconfiado. Nunca entendi a razão daqueles olhares. Seguia falando. Achava que elas não acreditavam no que eu dizia. Fui crescendo e me tornando um produto do meio. A linguagem trazida de casa foi ficando para trás. Foi substituída pelo português padrão da tv que assistia, das escolas por onde passei, dos livros que li.

Foi então que, há poucos dias, distraída com a embalagem de um xampu que acabara de comprar, me deparei com as instruções do produto traduzidas para o espanhol. E, subitamente, a lembrança dos olhares desconfiados das amiguinhas de escola voltaram à tona. Um momento de “iluminação” para zen budista nenhum botar defeito.

Freud explicaria facilmente o ruído na comunicação dos meus primeiros anos de escola. A culpa era da minha mãe. Claro, as mães e os mordomos são sempre os culpados! Na embalagem do tal xampu, havia duas palavras pronunciadas freqüentemente por minha mãe no nosso dia-a-dia: “enredado” e “desenredar”. A partir delas, uma enxurrada de outros termos e expressões começaram a saltar do álbum de família – “arredar”, “capaz!”, “te mete!”, “rapariga”, “caminha”, “apura, guria!”, “a recém” e o hábito de substituir os pronomes possessivos pelos artigos definidos como em “O pai já saiu” ao invés de “Meu pai já saiu”.

Desavisada, reproduzia, na escola e com pessoas que não tinham a mesma sorte de convivência familiar, a linguagem que ouvia em casa, sem filtros. Nada mais natural, já que é a família o primeiro núcleo social a que somos expostos e são os costumes familiares nosso primeiro manual de etiqueta e de regras sociais.

Nesse contexto, minha casa era realmente um laboratório “sociolingüístico” e tanto. Os habitantes: minha mãe, uma gaúcha da fronteira com o Uruguai, meu pai um ex-boêmio gaúcho de quem não se ouve mais o sotaque há muito. Meus irmãos e irmãs – três gaúchos e um carioca roqueiro e antigo conhecedor das gírias da malandragem –, dedos completamente diferentes de duas mãos unidas há mais de 40 anos.

Acho que, até hoje, ainda cometo, fora do ambiente familiar, as misturas lingüísticas que marcaram minha infância, heranças familiares, talvez genéticas. Não noto mais o estranhamento dos amigos que me ouvem. Se a causa é o que falo ou como falo. Com o passar do tempo, aprendi a externar conteúdos estranhos com formas sutis e histórias simples com rococós que distraem e divertem. Fazer o quê? Como cantava a gaúcha Elis, “vivendo e aprendendo a jogar”.

A arte que melhora esta coluna é de Wagner Morão. Thanx, boy!