domingo, 2 de dezembro de 2007

Sous le même ciel

“Rio de baixadas com seus vales
Vale a pena
Sua pobreza é quase um mito
Quando fito seus contornos
Lá do alto de algum dos seus mirantes
Que são tantos
E quem te disse que há miséria só aqui
Quem foi que disse que a miséria não sorri
Quem tá falando que não se chora miséria no Japão
Quem foi que disse não existem tesouros na favela
Então...
Tudo vale a pena
Sua alma não é pequena”
(“Tudo vale a pena”,
Pedro Luís e Fernanda Abreu)

À minha frente, a tela branca parecia instigar ainda mais a expectativa pelo começo da sessão. A exemplo do comercial daquele conhecido canal de filmes antigos da tv a cabo, é quando o filme começa que deixamos de viver as nossas vidas e passamos a viver a vida das personagens que vemos nele. E quando as luzes se apagaram, Paris, Je t’aime deu o ar da graça da bela cidade dos amantes e de personagens como eu e como você em situações que milhares de pessoas, como nós, passam todos os dias nas mais diversas partes do mundo, mas sem a sorte de estar lá.

O frio dentro da sala do cinema tornava-se mais intenso e a cidade luz, mais distante à medida que novos casais se formavam nas diferentes versões de cada diretor. Entre os vários pares representados no filme, o do segmento “Faubourg Saint-Denis”, do diretor Tom Tykwer, formado por uma atriz americana em começo de carreira (Natalie Portman) e por um rapaz francês cego (Melchior Beslon), foi o que mais tempo povoou meus pensamentos. Obviamente, o cinema não deixaria de mostrar que o rapaz cego era o que melhor enxergava naquele relacionamento. No entanto, mesmo sem surpresas, a história soa como aqueles conselhos que quanto mais ouvimos mais precisam ser repetidos.

E na volta para casa, lembrei de um casal de amigos que queriam ser mais do que isso e não conseguiam. Porque, no mundo real, ele era a metade cega da laranja e ela já não tinha mais paciência para lapidar, polir e esperar. Para piorar, os dois amedrontados por fantasmas do passado mal conseguiam caminhar na mesma direção e davam voltas em torno de suas próprias órbitas imaginárias; às vezes, colidindo, às vezes, se afastando, em sistemas solares mal desenhados.

Na ficção, o lirismo teve espaço garantido pela graciosa interpretação de um casal de mímicos e do único falante deste trecho do filme, o filhinho engraçado desse casal. Um desfile de pares de várias gerações e diferentes origens passa pela grande tela. Entretanto, nem mesmo em Paris e nem mesmo no cinema todos os finais são felizes. E até em Paris, Je t’aime, algumas pessoas solitárias aprendem a celebrar a vida do jeito mesmo como ela é – um sorteio: alguns tiram o grande prêmio; outros, prêmios menores; e há aqueles que saem sem nada, mas nem por isso ficaram de fora da brincadeira. Pela janela do ônibus, vi meu nome pichado nos muros, subúrbio adentro. O frio diminuía. Paris est ici.

sábado, 29 de setembro de 2007

Traje de gala numa noite de luxo

Foram vários anos de espera. Minha banda favorita já havia se apresentado no Rio duas vezes, mas pedras no caminho me privaram de assisti-la. Desta vez, nada me impediria. Nada, exceto meu próprio sono. Espantosamente, a poucas horas do início do show, caí nos braços de Morfeu e acordei quando faltava apenas meia hora. Levantei sobressaltada e me enfiei debaixo do chuveiro ainda zonza.

Uma grande amiga residente em Nova Iorque me trouxe de lá uma camiseta que é quase uma bandeira. Uma bandeira do Rock and Roll. Uma camiseta do clube CBGB, um altar do rock onde se apresentaram as melhores e mais lendárias bandas do final dos anos 70 até poucos anos atrás, quando a casa fechou suas portas. Vesti a bandeira e fui pra rua o mais rápido que pude. Para ajudar na correria, os pés estavam confortavelmente calçados dentro do meu velho Adidas preto de estimação, modelo também adotado por vários nomes interessantes do rock nacional e internacional. Resumo da ópera, roupa de gala!

O clima frio esvaziou as ruas naquela sexta-feira. Apenas boêmios, funkeiros e pagodeiros ocupavam os bares do subúrbio carioca. A expectativa era encontrar a minha geração novamente no Circo Voador. A casa, que já fora tão importante para a cultura carioca quanto o CBGB era para a nova-iorquina, agora mudou de cara, de público e de postura. Seus muros, antes abertos para a rua, agora estão vedados aos olhares curiosos. Seus portões, que antes acolhiam jovens assalariados recém-saídos do trabalho ou do colégio, agora estão abertos apenas para privilegiados que podem se dar ao luxo de pagar uma média de R$ 40, 00 por noite. O Circo agora recebe festas globais. Um ex-reduto agora patrocinado por uma multinacional.

Já estava no ônibus, a vinte minutos de casa, quando abri a bolsa e me dei conta de que havia esquecido o ingresso e a carteira de identidade. Ainda sem acreditar na minha falta de atenção, desci do ônibus, esperei a condução para me levar de volta e comecei tudo de novo. Mais trinta minutos me separavam daquele momento tão aguardado e davam um sabor ainda mais especial ao que estava por vir. Mal pus os pés do lado de dentro dos portões e vários olhares foram atraídos pela camiseta gringa. Olhares de reconhecimento. Olhares de admiração. Só mesmo numa noite como aquela, minha camiseta surtiria tal efeito.

Apesar de todas as restrições à casa, a noite merecia uma concessão. E as expectativas não foram frustradas. O público era o mesmo de dez anos atrás, com a postura de dez anos atrás, intolerante a atrasos e embromações, exatamente como há dez anos. Estávamos lá para ver o hard rock visceral e politizado do Living Colour. Já era uma da manhã e nada... A impaciência foi explicitamente demonstrada por meio de vaias e palavras de desordem. Até que finalmente foi feita a nossa vontade... A banda subiu ao palco e mostrou a que veio, melhor do que o esperado.

O talento, a criatividade, a energia e a inteligência do Living Colour vão muito bem, obrigada. O público cantou a plenos pulmões cada verso de cada música. Os músicos reconheceram a idolatria e estenderam o show em três retornos ao palco. Era o fim da turnê pela América do Sul. O público deixou o Circo de alma lavada. E eu mais feliz do que qualquer outro fã da banda. Motivo? Logo na segunda música, o vocalista Corey Glover resolveu tirar o casaco. E sabem o que apareceu? Uma camisa do CBGB... E sabem o que ele estava calçando? Um certo Adidas preto, velho e surrado que me é muuuuito familiar... Enfim, traje de gala numa noite de luxo.

A arte q melhora esta coluna é de Wilson Domingues. Thanx, Wilbor!

terça-feira, 26 de junho de 2007

STOP

“... a comida melhor está na cidade
dentro do armazém estragando
só pro povo ter consciência
que a lei da sobrevivência
é votar e não comer”
(“Lei da sobrevivência”, Marcelo Yuka)


O do estado diz que a secretaria estadual de educação não tem mais jeito. O do município diz que 4 mil crianças devem confiar na polícia e deixar suas casas no meio do bangue-bangue para assistir a duas horas de aula numa escola que já está lotada de outras crianças. A polícia toma tiro de bandido. A população dá entrada nos hospitais, vítimas das balas perdidas de uma cidade sitiada por uma guerra civil. E, como se não bastasse o horror da população diante de tanta violência e corrupção, as crianças-estudantes das escolas do Rio são jogadas em salas superlotadas como criminosas em celas de penitenciária. Seria uma premonição?

Deus nos livre! E que nos livre também do submundo de secretarias em que dublês de politiqueiros-ladrões-ex-atletas driblam a integridade e chefiam a máfia da merenda escolar, do rio card, da terceirização de funcionários... Será que rezamos baixo? Pois esse deus não nos tem ouvido e nem livrado desses males, amém. Ou será que a resposta está em PARAR finalmente de esperar um milagre dos céus e resolver prestar atenção no que está acontecendo? PARAR de enfiar a cabeça na areia; de votar no mais bonito e no mais simpático ou no mais jovem ou no mais rico... de usar o direito de voto para aproveitar o feriado depois da fila na sessão eleitoral para pegar uma praia... PARAR para mudar esse estado caótico que vem soterrando o país e, principalmente, o Rio.

Não é possível que o povo não esteja cansado de dar com a cabeça na parede votando em políticos que prometem soluções imediatas e mudanças repentinas para problemas que nasceram das entranhas de anos e anos de uma ditadura inútil que não serviu sequer para promover a real consciência do que a palavra “liberdade” significa.

Na ditadura brasileira, milhares de artistas, pensadores, trabalhadores, estudantes foram presos e torturados. Hoje, a antiga imprensa marrom é que faz o papel de in(vê)stigação, que os sobreviventes daquela época - agora no poder -, convenientemente, deixam para trás. Quantos deles hoje têm a oportunidade de fazer o que pregavam e não fazem? Preferem acusar o povo de preguiçoso ou de difamador da imagem do Brasil no exterior. Como se a imagem do país precisasse da difamação de seus filhos para ser denegrida...

Não há dúvidas de que a eleição de um político de origem humilde aponta para uma mudança na mentalidade de um povo que se recusava a se ver representado pela figura de um semelhante. Contudo, as esperanças de que esse povo estivesse, finalmente, aprendendo a exercer o direito de escolha começaram a rolar escada abaixo quando esse governo foi reeleito, a despeito do envolvimento em casos de abuso de poder e tráfico de influência, que levaram ao afastamento de ministros e assessores.

As imagens da prisão de políticos envolvidos em casos de corrupção e crime organizado remetem, ao mesmo tempo, às lembranças de filmes sobre a máfia e às aulas de história no segundo grau, em que o professor contava episódios de golpes militares que começaram com o fechamento do Congresso. Na época, a idéia causava arrepios de pavor; agora me pego olhando com inveja para a vizinha latina submetida a décadas de ditadura.

Em Cuba, o índice de analfabetismo é praticamente nulo. As universidades são públicas e recebem investimento do governo. Os hospitais são referência no tratamento de diversas doenças, recebendo estudantes de várias partes do mundo para aprender como se faz Medicina, sem qualquer conforto, é verdade, porém sem convênios e planos de saúde inacessíveis - e, na maioria das vezes, insuficientes. Não à toa, os pontos que fazem da ditadura cubana um oásis frente à democracia brasileira são resultados de uma política de educação séria. Uma política de longo prazo que nunca prometeu educação em troca de bens materiais, nem mudanças imediatas. Uma educação para quem quer saber ao invés de ter. Educação que trata os alunos como gente e não como números, que viram verbas, que viram receita, que vira desfalque.
No Brasil, nas últimas eleições para presidente, o único candidato que fundamentou sua campanha na Educação recebeu menos de 3% dos votos válidos...

A arte que ilustra esta matéria, "Travessia de Maleiros", foi criada pelo designer Wilson Domingues e ficou em 2º lugar no Salão Carioca de Humor 2007. Thanx, Wilbor!

segunda-feira, 11 de junho de 2007

Política uma hora dessas?

"Calma, Tudo está em calma
Deixe que o beijo dure
Deixe que o tempo cure
Deixe que a alma
Tenha a mesma idade
Que a idade do céu"
("A idade do céu", Jorge Drexler/ Versão: Paulinho Moska)

Quantas vezes eu já te disse isso? Não tô mais agüentando esse lugar. Quem não está mais agüentando sou eu, esse teu chororô. Já ouvi isso um milhão de vezes. Ah! Pelo menos você está contando, sinal que ainda presta um pouco de atenção no que eu digo... Ai não, vai começar de novo. O que foi que aconteceu dessa vez? Como assim “dessa vez”? Você não está lendo os jornais esse país não pára. É uma vergonha... Ah tá, é isso agora! Pô, você acha pouco? Não se tem mais vergonha por aqui. O cara que rouba uma manteiga na padaria vai preso e passa anos na cadeia, mas a OAB diz que o colarinho que rouba uma nação inteira não pode ser algemado. É um absurdo mesmo, mas você tem que se acalmar ou vai ter uma síncope. Não dá, quero ir embora daqui... como se pode viver num lugar com essa criançada toda virando bicho na rua? Vem cá, não chora. Pô, você não está vendo em volta? Uma geração inteira está sendo privada de uma educação decente, de uma família decente, de uma cultura decente e de um futuro... esses pobres todos, o que vai ser dessa gente? Meu bem, a gente tá fazendo a nossa parte... Mas ainda é pouco, amor... tem gente morrendo de fome, amor... Eu sei, benzinho, vem cá, vem! Quem pode fazer alguma coisa, só quer garantir o seu... olha pra você! Ih, pronto... É sério, parou de trabalhar pra estudar pra concursos públicos e pra que, me diz? Pra ganhar dinheiro trabalhando pouco? Dinheiro do povo, amor... pra comprar imóveis e viver de cobrar um teto pras pessoas que não podem comprar a casa delas? Olha só, você ta exagerando.. eu não tenho nada a ver com essa tua ladainha, daqui a pouco vai querer jogar a culpa da corrupção da país nas minhas costas, é melhor a gente parar com essa conversa! Não é você, eu não to dizendo que é você, só to querendo te mostrar que a gente não ta fazendo a nossa parte COISA NENHUMA, a gente passa é a maior parte do tempo fechando os olhos pra não ver... Puts, amor, chega, hoje não, era pra gente ter uma noite romântica, pô não estraga, vai? É tanta roubalheira vindo de cima, que as pessoas nem se importam mais de fazerem suas trapacinhas também. Deixa eu chegar perto, você parece uma fera... seu cabelo tá tão cheiroso... sua pele tá tão quentinha... PÁra! eu to falando sério, tô puta, tô uma fera e você fica excitado??? Você é um esTÚPIdo, um OGRO, BAbaca... Tá! Pra mim chega! Quer saber, você vem com esse papo pelo menos uma vez por mês... quando teus hormônios sossegam você esquece tudo. Vai embora pra Europa, então! Quero ver você ficar sem o Aterro no domingo, sem a Urca, sem o chocolate quente do Leblon, sem o outono do Rio... sem mim... a dondoca está toda revoltada, mas não rasga a carteira falsa de estudante, né? Ladrão que rouba ladrão... Não vem com essa não, você usa a carteira até pra dia de promoção!!! Vai responde... me chama de babaca!!! E quer saber do que mais? Vou dormir no sofá hoje. Feliz dia dos namorados pra você!

quinta-feira, 3 de maio de 2007

EcoNeura

"Oncinhas pintadas
Zebrinhas listradas
Coelhinhos peludos..."
("Bichos Escrotos", Titãs)

Para tudo no mundo há limite, até para as boas intenções. De repente, o mundo foi tomado por uma onda de histeria ecológica globalizada. Várias vezes, já me passou pela cabeça a idéia de que os que ajudam a propagar o tsunami de informações alarmistas sobre o aquecimento do planeta são os mesmos que, anos atrás, promoveram a overdose de pílulas de vitaminas e, depois, a neurose anoréxica da boa forma...

Porém, nem teorias malucas como essa seriam suficientes para justificar os excessos da nova moda ecológica. Um deles é o boicote ao consumo de carne bovina, movido pela notícia de que pecuaristas da região Norte vêm desmatando áreas da Amazônia para criação de gado. Seguindo esse raciocínio, deveríamos também abolir o consumo de óleo de soja, leite de soja, carne de soja, tudo de soja, pois agricultores da região centro-oeste do Brasil já teriam desmatado meio Mato Grosso para plantação do grão que é um dos nosso maiores produtos de exportação. Vamos logo radicalizar: paremos de beber café com açúcar e leite e de comer pão, vide a devastação causada pela plantação de café, cana de açúcar e trigo após tantos décadas de política do café-com-leite. Morramos à míngua, mas salvemos as terras para as formigas!!!

Pouco me importa que os politicamente ecológicos - ou seria "ecologicamente corretos"? - deixaram de presentear suas namoradas com Chanel nº5, que usa madeira da Amazônia brasileira, ou com os cosméticos das grandes marcas européias por usarem animais como cobaias. Deveríamos preservar a natureza, antes de qualquer outro motivo, para garantir nossa qualidade de vida AGORA e não daqui a 70 anos.

Não é possível que as pessoas não estejam notando o surgimento constante de novas mazelas diagnosticadas por uma classe de médicos ignorantes como "viroses", como se fossem uma doença só. Que vírus são esses que provocam sintomas tão diversos e estão cada vez mais resistentes a qualquer tipo de remédio? Onde eles estão? Na água que bebemos? No ar que respiramos? Nos alimentos que ingerimos? Essa, sim, deveria ser a prioridade de ecologistas e ambientalistas.

Onde estão o Greenpeace ou WWF que não se mobilizam numa campanha para conscientizar aqueles que preferem passear pelas ruas da cidade em um veículo 4x4 ou em milhares de carros que atravancam o ritmo da vida e poluem o ar para carregar apenas uma ou, no máximo, duas pessoas. Muito mais do que a vida em 2077, é mais importante preservar nossos nervos e pulmões já.

O que me preocupa de verdade é uma quantidade de pessoas equivalente à população do Rio de Janeiro contaminada com o vírus da AIDS na África, enquanto o mundo se mobiliza por um urso que foi rejeitado pela mãe num zoológico da Alemanha. O que me horroriza mesmo é ver pessoas "vivendo" em barracos de madeira sem luz, sem água, sem banheiro às margens da Baía da Guanabara e a poucos metros da Avenida Brasil, enquanto um grupo de biólogos investe recursos de sociedades de pesquisa na luta para combater a extinção do papagaio-de-cara-roxa no norte do Paraná.

Nada contra o urso branco alemão nem contra o papagaio paranaense, mas será que só eu desconfio que talvez a extinção de algumas espécies seja a confirmação da teoria da seleção natural em que os mais fortes garantem seu visto de permanência em detrimento dos mais fracos ou menos resistentes? Será que tais biólogos também não estão interferindo e afetando as leis da Natureza? Seria pedir demais que parte desses esforços despendidos com espécies selvagens - para as quais talvez tenha mesmo chegado a hora de dar por encerrada sua participação nesse planeta caótico - fosse revertida para uma raça que se recusa a extinguir-se, mas tem padecido com a crueldade de desgovernos, desamores e desatenção dos próprios semelhantes? Que raça é essa...

TROQUE SEU CACHORRO - AGORA - POR UMA CRIANÇA POBRE!!!!

(Foto retirada do site pantec.wordpress.com)

Um dia de cada vez

"O Sol há de brilhar mais uma vez
A luz há de chegar aos corações"
("Juízo Final", Nelson Cavaquinho/Elcio Soares)




Num dia qualquer, L. acordou, olhou para o teto e não conseguia lembrar por que tinha que levantar da cama naquela manhã. Aparentemente, não havia nenhuma razão justa para tirá-la de casa. Foi então que percebeu ter perdido uma batalha. Havia se deixado dominar pelo desânimo. Com o passar do tempo, foi notando que nada no seu dia-a-dia parecia valer a pena, nada que a motivasse a seguir adiante. Mesmo assim, o senso de obrigação a empurrou para fora da cama, para a ducha, para o elevador, para o estacionamento. Abriu a porta do carro, sentou-se na frente do volante, mas não conseguiu girar a chave, muito menos chegar ao trabalho. Horas mais tarde, o médico diagnosticava: depressão. Sua irmã a levou de volta para casa.

A poucos metros dali, F. sentia o calor do sol em seus cabelos ruivos e minuciosamente escovados. Acabara de tirar a carteira, precisava ter coragem para deixar a garagem e enfrentar os vários quilômetros até a sede do comitê. Era um dia de estréia. Precisava desse novo desafio para compensar os vários anos gastos ao lado de alguém que nunca a entendeu. Ao chegar, sentiu-se vitoriosa. Suas longas pernas pisaram o chão com muito mais confiança ao sair do carro. Confiança de que estava no caminho certo, de que a vida continua, de que novos amores aparecem, de que sua auto-estima não precisa de mais ninguém, além dela mesma. Entrou no prédio de cabeça erguida, peito estufado, cabelos brilhosos e um largo sorriso no rosto.

Meses mais tarde, L. contava com a ajuda de ansiolíticos para poder dirigir até o trabalho e realizar as atividades diárias. Já conseguia evitar a espera por acontecimentos significativos e a decepção, todas as noites, ao abrir a porta de casa sem novidades para comemorar. Hoje, consegue simplesmente se desligar do que a aborrece, conectando sua atenção a alguma galáxia distante. Amigos e colegas de trabalho notaram a mudança, se tornaram mais afetuosos, respeitando, contudo, a distância que ela prefere manter de tudo e de todos. Em breve, sua fase de reaprender a viver com a ajuda de tranqüilizantes estará terminada. Se conseguirá manter o distanciamento, ninguém pode prever. Mas sabe que dando um passo após o outro, tem voltado à vida. Não à normal, mas a uma nova vida que está construindo. Ao contrário do que parece, ela tem sorte. Quantos têm a chance de apertar o "reset" e recomeçar com um mínimo de perda?

Dirigindo, F. se sentia mais dona de si e de seu destino, autoconfiante e cheia de coragem para novas empreitadas. Partiu para a conquista de um novo amor. Dona de um estilo que lhe confere um charme inegável, foi bem sucedida. Mas depois de alguns encontros, percebeu que se enganara, o novo amor não passara de uma "ilusão de ótica". Porém, consciente dos degraus que já tinha conseguido subir e da guinada que dera em sua vida, a moça sabia que uma ilusão como essa não seria suficiente para ofuscar o brilho da ótima fase. Sem dramas nem sofrimentos, decidiu que aquela pequena desilusão nada mais era do que uma situação passageira e não seu foco principal. Pisou fundo e acelerou a vida pelo caminho que vai traçando a cada troca de marcha.

Quando olha para si, L. percebe que apesar de ter de reconstruir a relação com o mundo, à sua volta, tudo ainda está em seu devido lugar. A reconstrução será feita de dentro para fora e diz respeito muito mais a si mesma do que a qualquer outra pessoa. Quando sua ponte com o mundo estiver reconstruída, estará pronta para enfrentar novos desafios, como F. e a grande maioria das pessoas fazem - matando um mamute a cada dia, escrevendo com as próprias mãos um novo capítulo da própria história. Boa sorte, meninas!

A arte que ilustra esta coluna é de Alexandre Coelho. Valeu, Alex!

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Walk on bye



"eu ando pelas ruas prestando atenção em cores
que eu não sei o nome..."
("Esquadros" - Adriana Calcanhoto)

gosto de andar. ando pelas ruas e, quase sempre, quase sou atropelada. porque não olho para os carros. os carros são os que menos me interessam na rua. olho para as pessoas. olho até para as pessoas dentro dos carros, mas não para os carros e eles dificilmente param para mim.

as pessoas por trás das janelas também são interessantes, me flagram observando-as e são pegas de surpresa, se sentem incomodadas por encontrar um olhar tão curioso quanto o delas. Também tenho direito de olhá-las. Quem foi que disse que os transeuntes não podem fuçar? Quem foi que disse que só os debruçados nos pára-peitos é que podem? Nós que passamos também temos nosso direito de vagar sem pressa. Cabeça alta a divagar.

um dia, num momento de meninice, levada por pensamentos surpersticiosos, ia andando por uma rua do subúrbio pensando "se encontrar uma rosa branca pelo caminho, é porque ele gosta de mim". Quando cheguei no final da rua, olhei para o jardim de uma casa repleto de rosas vermelhas e apenas uma esmaecida, quase morta, entre o pálido, o chá e o branco. Seria uma rosa branca ou seria uma rosa morta? Nem percebi o carro que se aproximava devagar sem buzinar. O motorista percebeu que minha cabeça estava em algum lugar distante, muito distante dali e não quis me assustar. Mas me assustei assim mesmo. Ele riu.

meus dias sempre começam bem quando caminho o longo trecho de sempre com fones de ouvido bombeando o som de algum lugar doido desse mundo no meu cérebro. o trabalho rende. o sorriso surge mais fácil no rosto. combino as passadas com a batida da música, deixando que o mp3 defina se vou chegar mais cedo ou mais tarde no trabalho. imagino uma câmera seguindo meus passos em super8 e uma voz narrando "lá vai ela para mais um dia de labuta". uma história que começa assim não promete nada de especial. E vou seguindo, jurando para mim mesma que "desta vez vou escrever uma história diferente". o dia vai escorrendo e tudo acontece exatamente do mesmo jeito. ainda bem.

quando saio do trabalho e decido andar um pouco mais para apreciar o dia, percebo faróis que se apagam e acendem no ritmo de olhos que piscam. sou a única alma na calçada. será que piscam para mim? ou será que caiu um cisco em seus olhos de vidro? percebo buzinas q tocam de leve. sou a única pedestre no bairro dos dois carros por garagem. será que as buzinas querem minha atenção? ou será que gritam de surpresa ou de escárnio por encontrarem um pedestre num bairro em que cada garagem tem, pelo menos, dois carros? não importa. porque não olho para os carros. os carros são os que menos me interessam na rua. nessas caminhadas, eles passam em alta velocidade. nunca param para mim. e, diferente do subúrbio, nem tenho a chance de olhar para as pessoas dentro deles.


A arte que ilustra esta coluna é de Alexandre Antunes. Thanx, teacher!

domingo, 18 de março de 2007

O medo e o caminho


"O medo é medonho, o medo dominaO medo é a medida da indecisão" ("Miedo", LENINE)


Na ânsia de fazer o primeiro gol com a camisa do novo time, o rapaz mal recebera a bola e saiu correndo alucinado sem olhar para os lados, nem para os companheiros de equipe que livres esperavam o passe, ou mesmo para os jogadores do time adversário. Seus olhos enxergavam apenas a si mesmo fazendo a volta de comemoração pelo gramado, saudando a torcida, vibrando para a câmera da TV. Seus ouvidos só queriam escutar a massa gritando seu nome. Danou-se a correr, sem muita elegância. Até que chegou o momento de encarar o goleiro. Sentiu um frio na barriga. Nos milésimos de segundo que sucederam, foi tomado pelo pânico de conseguir o que tanto queria. Seus músculos congelaram, suas pernas endureceram. Cara a cara com o goleiro – que, cego de medo de tomar um gol, deixara para trás o gol livre, – errou o chute... Aquele até eu faria!!!

Do gramado para a vida, perdemos vários gols todos os dias. Gols de placa ou de barriga, tanto faz. Perdemos. E pior, muitas vezes até nos furtamos de jogar para não admitir a possibilidade de perder o jogo ou errar o chute. O que é pior?

O pior não é perder o gol. O pior é perder a jogada. Quantas vezes vemos dribles tão alucinantes, passes tão perfeitos que ficam na memória mais tempo do que um gol bobo? Quantas vezes, para realizar uma simples tarefa, encontramos no meio do caminho pessoas tão incríveis ou vemos gestos tão singelos que nos fazem esquecer o que era mesmo que íamos fazer?

Momentos como esses são sagrados. Representam tanto e quase nem reparamos neles. Acontecem a todo instante, mas só percebemos se conseguimos nos manter atentos. Se conseguimos nos manter presentes no presente. São momentos em que nos desligamos do passado e esquecemos do futuro. Em que conseguimos olhar para o agora. Em que não permitimos que nossa mente nos leve embora em devaneios quase sempre desnecessários. E que, geralmente, não nos levam a lugar nenhum.

Ter objetivos é necessário. Mas prestar atenção nos caminhos que traçamos para atingi-los é o que faz da jornada uma boa história para contar. Por isso, cada passo é importante e deve ser bem dado, o que não é nada fácil. A todo instante nos desviamos e o passado insiste em bater à nossa porta. Ou a perspectiva do que vai ou não acontecer nos traz a sensação de medo que nos paralisa. E o medo domina, toma conta, interrompe o caminho, nos faz perder tempo demais com algo que está absolutamente fora do nosso controle: o amanhã.

O medo é tão forte que nos impede de caminhar. Deixamos de ver e de viver lindos momentos, causamos sofrimento a nós mesmos e aos outros por conta dele. Pulamos para fora do barco, roemos a corda, amarelamos... por pura falta de atenção no presente, nos presentes que ganhamos do agora.

Quantos gols você fez hoje? Não importa. Mas e as belas jogadas? Nenhuma? Ainda há tempo. O juiz nos concedeu mais alguns minutinhos...

Este texto é dedicado a Paulo Costa.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Sobrevoando o bairro

Goiabada-cascão em caixa
é coisa fina, sinhá
Que ninguém mais acha
Rango de fogão de lenha
Na festa da Penha comido com a mão
Já não tem na praça, mas como era bom...
(“Goiabada Cascão”, de Wilson Moreira e Nei Lopes)



Take 1
Minhas lembranças mais antigas das ruas da Penha me levam de volta ao colo da minha mãe. Descíamos do ônibus, cujo estofado azul tracejado de branco era o meu favorito. Acho que voltávamos do médico. Acho que era no mesmo bairro, porque a viagem era curta, mas suficiente para adormecer e fazê-la subir a ladeira e as escadas do prédio comigo, um peso vivo, em seus braços. Naquele tempo, ela caminhava sem dificuldades. Os tentáculos da artrite ainda não haviam corroído as articulações de seus joelhos e passeávamos muito. Naquele tempo, minha rua tinha bloco de carnaval, o “Vai-e-vem”. Ainda lembro da noite em que desci pela primeira vez para ver o bloco passar. Parecia que meu pequenino corpo se espatifaria com a vibração dos bumbos e tambores que me deixava apavorada e me impedia de sambar como as outras crianças mais experientes.

Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha...
(“Subúrbio”, Chico Buarque)



Take 2:
Sempre de mãos dadas com minhas irmãs, descia para tomar sol, no quintal da Tia Mira, a simpática “tia” que abasteceu e refrescou, durante várias décadas e gerações, os moleques da rua e dos prédios com seus famosos sacolés de ki-suco, chocolate e amendoim.
Ou então, íamos todos, os guris e as gurias, ao Parque Ary Barroso brincar para que minha mãe pudesse arrumar a casa e fazer a comida em paz. O parque era uma grande área verde, com córrego e tudo, cheio de insetos diferentes, camaleões, peixinhos, com os brinquedos tradicionais, nos quais passava horas e horas, e grama verdinha pela qual descia rolando várias vezes e chegava lá embaixo toda mordida de formiga.
Nesse parque, fiz amigos, como a Karla que me abraçou forte ao me reconhecer no primeiro dia de aula no jardim de infância, depois de termos passado uma única manhã de domingo brincando. Amigos que me aturam até hoje.
O parque agora faz divisa com uma favela, de onde volta e meia corpos são jogados. Apenas aos finais de semana, homens ocupam suas quadras. As poucas crianças se limitam às áreas mais próximas da rua, onde pela manhã idosos fazem tai chi chuan. O córrego secou. E, nos finais de tarde, meninos e rapazes desempregados malham seus músculos e queimam suas ervas.
Na minha infância, as ruas da Penha eram coloridas. Suas fachadas, as mesmas de hoje, não eram tão sujas. E me pergunto quando os comerciantes e moradores começaram a perder o zelo pelo nosso bairro.


Mangueira, Ilê Aiê e viva o baticum
Quando a Padre Miguel encontra com Olodum
Caymmi com Noel, no Tom maior Jobim
A Penha, a Candelária, o Senhor do Bonfim...
(“Lá e Cá”, Lenine e Sérgio Natureza)



Take 3:
Um dos motivos de orgulho dos moradores era a fartura de condução vinda de todos os cantos da cidade. Todos podiam vir para as festas de outubro, freqüentar nosso parque de diversões, o Shangai. As festas da Penha, a padroeira, eram famosas. A escadaria da igreja serviu de penitência e prova de fé para muitos que esfolaram seus joelhos nela. Esforço recompensado pela bela imagem da igreja erguida em cima da pedra, vista de vários pontos da cidade, da Ponte Rio-Niterói, do Alto da Boa Vista e do avião de quem chega no Aeroporto Internacional. Mas hoje ela está cercada de favelas, onde moram trabalhadores e perigosos bandidos que já chegaram a ameaçar a realização da tradicional festa do bairro por vários anos e cuja reputação assusta os que gostariam de visitar a bela igrejinha, o mais belo ponto de luz na noite do subúrbio carioca.


Hoje é domingo
E, eu preciso ir à festa
Não brincarei
Quero fazer uma oração
Pedir à santa padroeira proteção
Entre os amigos
Encontrarei algum que tenha
Hoje é domingo
E, eu preciso ir à Penha
(“Festa da Penha”, Cartola e Asobert)



Take 4:
Hoje, o bairro deixou de ser famoso pela igreja e sua festa. Aparece apenas nas páginas policiais. Os fogos da Festa da Penha foram substituídos pelo fogo que queimou pessoas no ônibus 350. A fé dos fiéis que subiam a escada de joelhos foi trocada pela caça de assassinos como os do jornalista da Globo. O bumbo e o tambor deram passagem às granadas e rajadas. A condução que trazia pessoas de todas as partes, agora leva embora os que não suportam mais a violência, as constantes guerras entre as diversas comunidades carentes, e tiveram seus imóveis desvalorizados.
Hoje até a velha parceria entre os comerciantes locais e os moradores não existe mais. Os antigos moradores vêem a camaradagem e a boa vizinhança darem lugar ao interesse por um ponto de alto movimento e passagem de veículos que gera renda e corrupção por parte daqueles que deveriam defender os cidadãos e acabam se vendendo e jogando contra eles.


Demonstrando a minha fé
Vou subir a Penha a pé
Pra fazer minha oração
Vou pedir à padroeira
Numa prece verdadeira
Que proteja o meu baião
Penha, Penha
Eu vim aqui me ajoelhar
Venha, venha
Trazer paz para o meu lar
(“Baião da Penha”, Luiz Gonzaga)


Take 5:
Ainda bem que sempre há aqueles que não desistem. Os que se recusam a deixar sua raiz para a erva daninha. Os que preferem ficar e tentar fazer do seu espaço a continuação das boas memórias de uma vida inteira.
Vai chegar o momento em que as desigualdades vão parar de gerar tanta dor e, desse momento de caos em que nos encontramos na cidade toda, surgirá uma luz que cegará aqueles que só querem destruir.
A crise é um mal necessário para que novas idéias e padrões de comportamento nasçam, ainda que baseados nas velhas memórias de um passado distante e feliz. Precisamos acreditar que o bem vai vencer. Que cada um de nós é responsável pelo que nos cerca e, por isso, depende de nós também dar mais atenção ao próximo para que novos monstros parem de nascer. Se olharmos o ambiente onde vivemos como uma extensão de quem somos, começaremos por nossa calçada, nossa rua, nossa quadra, ultrapassaremos as fronteiras do bairro e quem sabe um dia, seremos uma grande nação. Um “país sério”, afinal. Há muito tempo, alguém disse – com razão – que o homem É um produto do meio. Mas há quem afirme que o meio também é um produto do homem.

sábado, 27 de janeiro de 2007

Aaah! Eles se foram...

De uma hora para outra, a porta da frente se fechou para não mais abrir. Os meninos do interior, que ali moraram, abriam e fechavam aquela simpática porta de vidro e desfilavam pelos corredores do edifício no meio tempo de seus afazeres. Eles se foram...

Deixaram para trás uma legião de meia dúzia de fãs que secretamente se deleitavam com seus ir e vir rotineiros. Os maridos nunca desconfiaram do repentino entusiasmo das mulheres logo que os meninos apareceram. Elas sonhavam com eles. Fechavam seus olhos e lembravam dos “bom-dias” pelas escadas e dos “ois” no hall do prédio.

Deixaram para trás corações lacrimosos e saudosos, partidos até. O que seria delas agora? O que seria de seus casamentos dali em diante? Por quem elas se levantariam toda manhã, penteariam seus cabelos antes mesmo de escovar os dentes? Para quem passariam tanto tempo se olhando no espelho e para quem olhariam pela janela depois que os meninos partiram?

Nem mesmo os filhos eram mais capazes de trazer tanta alegria. Ao saírem para a jornada de trabalho, davam a elas o sossego para cuidarem das suas próprias tarefas. Sossego nenhum, que a mente trabalhava movida a expectativa. As horas do dia passavam em função do retorno dos rapazes da lida.

Cada uma tinha o seu preferido. Às vezes, trocavam, às vezes, acumulavam. Nunca comentaram abertamente. Apenas sorriam umas para outras numa espécie de transmissão de pensamento e já sabiam, adivinhavam os devaneios das companheiras de fantasias.

Quando os maridos voltavam do trabalho, encontravam a casa arrumada, a comida pronta, assistiam ao jornal, à novela, ao futebol e achavam que as esposas estavam na cozinha lavando a louça, na área de serviço estendendo a roupa, colocando as crianças para dormir, entretidos nos seus próprios sonhos de campeonato, de promoção profissional, de secretárias, de vizinhas...

Mas elas não estavam lá, como eles pensavam. Só de corpo presente. Seus olhos procuravam a janela. Suas mentes, os moradores do outro apartamento. Mas eles também não estavam mais.
Levou tempo para que os maridos notassem a falta de entusiasmo das esposas. Tudo voltou a ser como era antes. Antes dos meninos irem parar naquele prédio. Os maridos jamais associaram um fato ao outro. Apenas se perguntavam o que podiam fazer para reacender em suas esposas a luz do bom humor, da empolgação, do apetite, da imaginação. Nada podiam. Nem elas. Só lamentavam e suspiravam.

A ilustração que melhora esta coluna é de Wagner Mourão. Thanx, boy.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Tatuagem na nuca

Cansados de responder sempre as mesmas perguntas, os integrantes da mineira PATO FU ficaram exímios em inventar novas respostas para a origem do nome da banda. Uma das mais divertidas remete ao dia em que assistiam, no programa GLOBO RURAL, a uma matéria sobre criação de patos. E, justamente na hora em que o entrevistado ia contar um causo sobre a fuga de um deles, uma interrupção no fornecimento de energia deixou os espectadores com a frase pela metade e muita curiosidade: “O pato fu...”.

Inspirada na criatividade dos mineiros, mas não tão competente quanto eles, resolvi criar diversas explicações para a tatuagem que há anos habita minha nuca. Um átomo? O símbolo da energia nuclear? Uma flor? Uma nova seita? Um sol? Já ouvi todo tipo de pergunta. Até “que ‘S’ é esse aí no meio?”, daqueles que esqueciam meu nome. Desse modo, para cada pergunta uma nova e pirada historinha surgia. Algumas prontamente aceitas, outras de digestão mais difícil, dependendo da expressão facial da autora.

Pois bem, chegou a hora da grande verdade. Simplesmente, uma professora de biologia me colocou contra a parede como nenhum outro professor de química conseguira e resolveu tirar a limpo que história é essa da professora de inglês se apropriar de um ícone da disciplina alheia: um átomo com a letra “s” em seu núcleo.

Tudo começou quando, muito tempo atrás, na leitura dominical do evangelho kardecista, ouvi alguém dizer que tudo que existe está em movimento. Tudo? Tudo! Um movimento sutil, imperceptível ao olho nu. O movimento dos elétrons de um átomo combinados com os de outro átomo e de outro e de outro... Desconectei minha atenção da palestra e fiquei dias e dias pensando, muito impressionada, naquilo. Nunca tinha me dado conta do fato. Mas fazia todo sentido do mundo. Tudo está em movimento, tudo está vivo. No fundo, seres inanimados não existem.

Fechava os olhos e imaginava os átomos se ligando uns aos outros, suas conexões, seus elos como beijos. Átomos diferentes se unindo, formando novas moléculas, sementes de novos projetos, coisas, seres. Brincava de fixar os olhos em algum objeto e deixar minha imaginação voar por dentro da estrutura de sua matéria, até chegar nele novamente, o átomo. A verdadeira matéria-prima. A unidade física de onde tudo e todos viemos, o que faz de nós farinha do mesmíssimo saco. Preto ou branco, rico ou pobre. Diferentes na forma e iguais na estrutura, como os átomos.

Na tabela periódica, há apenas 107 elementos, os nomes e as características dos sujeitos, dos 107 caras que andam se misturando por aí para dar conta de fazer absolutamente tudo o que vemos, tocamos e sentimos. E até do que nem percebemos. Pela maneira como tudo foi bem organizado, partindo do átomo, não parece tão difícil de conceber que tudo pode ser destruído por uma explosão atômica. A complexa simplicidade como tudo foi orquestrado parece nos querer mostrar que é tudo brincadeira. Que o que realmente importa não está no que do átomo pode surgir. A fragilidade das ligações que formam tudo o que há e o milagre de ainda estarem todos os átomos ligados uns aos outros me faz prender a respiração e perder o sono.

E se quem inventou esse “mega lego” resolver puxar a tomada do mundo e desconectar as ligações dos 107 tipos de átomos que existem? O que vai sobrar? O elemento representado pelo desenho que adorna minha nuca, sem dúvida alguma.

A ilustração desta coluna foi retirada do site www.ethereal.org/digitalart/atom/atom.jpg