domingo, 16 de novembro de 2008

Massa do bem

A indústria das celebridades está tão rentável que não há mais distinção entre o que poderia ser um bom e um mau motivo para se tornar famoso. Ligamos a TV e, a cada dia, nos deparamos com uma infinidade de caras novas. É praticamente impossível associar nomes a pessoas. Até porque, a fama instantânea transforma miojo em macarrão, em questão de segundos, e o “famoso quem” de hoje em “Zé Ninguém”, semanas depois.

Por outro lado, essa rotatividade provoca um aumento do nível de exigência: é preciso ser “bom” para povoar a lembrança da assustada audiência por mais de uma semana. O que dirá um mês... Por um ano, só tendo mesmo muito background... (A interpretação para background é livre!)

O jornalismo também foi contaminado por essa “indústria”. No espaço de um mês, fomos bombardeados pelo triste seqüestro de uma adolescente que ganhou status de novela do horário nobre, assim como várias outras tragédias que se sucederam nos últimos anos, em que vítimas e algozes se tornaram atores de um teatro macabro porque real.

Tentou-se conferir à última corrida da temporada de Fórmula 1 um patamar de final de Copa do Mundo. E fechamos com chave de ouro, a coroação do novo rei do mundo: the first black American president.

Uau! Esse, sim, sem sombra de dúvida, um fato histórico. Não só pelo fim da era Bush, mas por tudo mais que eu não vou repetir aqui porque muita gente já deu bastante palpite na TV e o homem terá (espera-se) vários anos pela frente para explicar o porquê de sua importância. Não sou eu, uma mera professorinha brasileira, que vou querer dar pitaco nisso também. Ou não aqui, em público... rs

Só toquei mesmo nesse assunto para ilustrar o exagero cometido durante a cobertura das eleições americanas pela imprensa nacional. Acredito que o nosso país deve ter feito a melhor cobertura do mundo! Só perdendo mesmo para a própria imprensa local. O assunto foi noticiado, debatido e comentado exaustivamente em todos os horários do dia.

Nem as eleições em Portugal, nossa primeira matriz, é tão comentada! Aliás, quem é mesmo o atual primeiro ministro de Portugal? E o da Inglaterra, quem se lembra dele? Mas nossos impávidos repórteres foram espalhados por todo o território americano para acompanhar de perto os últimos momentos das eleições.

Nem as populações ribeirinhas do Rio Amazonas receberam tanta atenção nas últimas eleições presidenciais, mas um jovem negro desconhecido morador de Nova Orleans foi destaque no último jornal do dia da maior emissora do nosso país declarando sua óbvia intenção de voto. E eu com isso? A mim basta saber que Obama venceu. Os números de delegados que o apoiaram na Louisiana não vão aumentar nem diminuir um centavo no meu pagamento no final do mês. Então, dane-se!

O excesso de informação inútil me irrita! O excesso de gente sem importância ganhando destaque por nada me cansa, me faz desconfiar de quem até pode ser bom. E, ao ouvir a pergunta “quem é esse?”, já respondo, automaticamente, “ah, não deve ser ninguém”.

Eu queria ligar a tv todos os dias e ver uma notícia como essa: “Prato de pão deixa mais nutritivo o sopão de moradores de rua”. Explico. A exemplo dos restaurantes de Praga que servem uma sopa típica em um recipiente feito com massa de pão, um grupo de estudantes de Relações Públicas da Apae de Campinas desenvolveu a excepcional idéia de usar um pão especial e resistente como prato para um sopão servido a moradores de rua. Os pratos de isopor deixam de ser usados, o que contribui para a preservação da natureza. E a refeição dessas pessoas torna-se ainda mais nutritiva. O projeto foi apoiado pela 3M e premiado pelo Instituto Ethos.

Foi impossível não sentir um nó garganta ao ver um dos beneficiados chorando ao receber aquela que talvez fosse sua única refeição em um dia inteiro e afirmando que a mão de Deus agia através daquelas pessoas.

Os nomes dos alunos responsáveis pelo projeto? Seus rostos? Quem sabe? Mas a importância dessas pessoas definitivamente não será esquecida em uma semana, nem em um mês, nem em um ano por aqueles que viram a realização dessa “massa do bem”. Quantas celebridades fazem isso por alguém?



Mais informações sobre a “massa do bem” podem ser encontradas em
http://www.institutobrasilverdade.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=3219&Itemid=2
ou http://g1.globo.com/jornalhoje/0,,MUL844855-16022,00-PRATO+DE+PAO+DEIXA+MAIS+NUTRITIVO+O+SOPAO+DE+MORADORES+DE+RUA.html

sábado, 25 de outubro de 2008

Olho no lanceeee!

Da penúltima vez em que fora a uma partida de futebol, estava acompanhada de um colega de trabalho. No intervalo do jogo, meu colega, que ocupava o assento ao meu lado, se levantou e ficou de costas para o campo admirando a arquibancada acima de nós. Como não se tratava de um colega gay (creio eu!), imaginei que estivesse olhando as moças bonitas que estavam algumas fileiras acima.

Naquele instante, lembrei imediatamente dos shows em que ia com meu irmão e dos olhares que ele lançava para (todas) as moças bonitas que passavam. Pensava comigo, tomara que meu parentesco com ele seja óbvio! E torcia para que eu não me parecesse com aquelas mulheres que andam de mãos dadas com o “parceiro” pelas ruas do centro da cidade e não percebem (será?) que o acompanhante está olhando para outra mulher. E pior, a outra mulher nota que está sendo secada pelo “companheiro” alheio. O que será que elas pensam umas das outras?

Pulando da digressão de volta para o estádio, não pude torcer para que o grau de parentesco parecesse óbvio, porque não havia grau de parentesco com o colega de trabalho. A decisão mais sensata que pude tomar na hora foi aproveitar a vantagem de ser uma mulher num jogo de futebol e admirar as belas paisagens que desfilavam ao meu redor: os torcedores. Raramente se pode contar com tantas opções para admirar no dia-a-dia. Em um estádio em dia de jogo, estão todos ali aglutinados, a nata, exercendo a sua virilidade e “graça” para as poucas corajosas que se atrevem a invadir um espaço tradicionalmente masculino.

Pois bem! Recentemente, uma série de desencontros me levou ao mesmo estádio, mas desta vez, pasmem, sozinha. Isso mesmo! Queria muito ver aquele jogo e os machos disponíveis foram sem mim. Saí de casa, fui até a bilheteria do estádio, comprei o ingresso, entrei, sentei, torci, ri, gritei, aplaudi e fui embora. Toda essa diversão, sem me preocupar em torcer para que o parentesco parecesse óbvio. Hilário foi observar o ar de interrogação de alguns com a presença de uma torcedora apaixonada como eles, porém solitária. E descobri que não há mais tabus. Não há lugar em que minhas pernas não possam me levar.

Um dia desses, aquele mesmo colega de trabalho me mandou um e-mail com fotos do David Beckham secando as cheerleaders num jogo ao lado da sua bela esposa Spice Girl. Nas fotos, ela estava uma fera. O título do e-mail era “Até Beckham passa por isso”, mas acho que o título certo deveria ser “Até uma bela Spice Girl passa por isso”! rs

Trilha sonora sugerida:
Chico Buarque - "O futebol"


Foto de Sara Simões - Estádio João Havelange, o "Engenhão".

domingo, 20 de julho de 2008

Nadando contra corrente

Acordar, me arrumar, engolir, sair. O sol mal nasceu, e o dia já começa frenético. Trabalhar, trabalhar... (Nossa! Já deu a hora.) Juntar tudo, desligar tudo, sair correndo. Pegar ônibus, descer. Pegar outro, descer. Assinar o ponto, pegar o giz, o material. (Ah, já ia me esquecendo das fichas de chamada!) Abrir armário, fechar armário. Primeira turma: explica, escreve, explica, apaga, mostra o livro, faz mímica, corrige. Segunda turma. (Séries diferentes no mesmo dia: Onde foi mesmo que eu parei na semana passada? Nunca lembro direito!) Terceira turma: repete o script da primeira. Acabou. Hora de voltar. O sol? Nem o vi, encerrou o expediente muito antes de mim e levou junto com ele toda a minha energia.

Quatro anos de anemia depois, a única hora que importa é a de dar um basta. Que ciranda é essa que nos permitimos dançar em busca de um ouro de tolo? Consegui o teto que me abriga e já está de bom tamanho por hora. Foi dada a largada para o ócio criativo, para recarregar as energias, investir no que me dá prazer, em “bens duráveis” que malandro algum conseguirá me roubar, nem o fogo queimar e nem a água apagar. É chegada a hora de descobrir e desfrutar das pequenas riquezas que consegui colecionar até agora, nem que seja para justificar o esforço e a baixíssima qualidade de vida de tempos atrás.

Ao meu redor, o mundo continua insano na correria, assim como (quase) todos que vivem nele e o fazem rodar cada vez mais rápido. Não há muitas escolhas. Ou você entra na ciranda e gira junto até cair tonto, ou pula fora e observa de camarote. Decidi pular quando desconfiei que iria cair. E que gosto bom é o de dar adeusinho e sair sorrindo...

Aqui do lado de fora, escolhi estudar enquanto os cirandeiros giram e trabalhar quando quase todos já deixaram a roda. Não tenho saudades da comida mal feita que já cai doendo no estômago, nem das buzinas que entram doendo pelo ouvido. Não tenho mais saudades da minha cama nem do meu travesseiro. Agora conheço cada detalhe da minha casa. Faço presentes para os amigos. Tenho tempo de ver o que é bonito e registrar pra dividir com meus queridos. E de ouvir o que é bom (nem sabia quantos sons legais tenho em casa!!!).

Curiosamente, a coceira neurótica por sair em busca de diversão noturna ou pelo consumo supérfluo de luxinhos fugazes se foram como folhas secas na enxurrada. A cidade parece até mais bonita. Meu rosto parece mais saudável, vejo até novas cores nele. Aliás, tenho até tempo de olhar para ele. Descobri o significado de “Deus provê”: quando a grana aperta, uma porta se abre e as contas batem certinho antes mesmo que a respiração perca seu ritmo.

A vida é bem boa quando se aprende a vivê-la na velocidade certa... a dar a ela seu verdadeiro valor, assim como às coisas que a compõem. Tenho muito pela frente, mas a primeira lição já aprendi. A vida é o que fazemos dela.

Trilha sonora sugerida: RJD2 - “Since we last spoke”
Imagem retirada do site www.curado.com

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Sala de espera


Quando dei por mim, estava cochilando sentada na sala de espera da pediatria. Minha sobrinha, com a cabeça encostada no meu ombro ainda lutava contra o sono. Horas se passavam, o tempo corria, as nuvens voavam no céu e nunca chegava a nossa vez. Naquela tarde, entre os que aguardavam atendimento, não havia nenhum bebê bonito para nos distrair um pouco. Discretamente, chamei a atenção da minha pequena companheira de cadeira para o fato e ela concordou risonha. Não tínhamos mais assunto. Para piorar, eu estava estranhamente calada naquele dia, acordara assim, silenciosa e angustiada.

Entre os pensamentos que passeavam distraidamente, pesquei um em que imaginava mães, obrigadas a visitas mensais como aquela. Tardes inteiras de espera por quinze minutos de atenção especializada e muitos reais gastos com remédios a seguir. Pensei na criança chorando, nos preparativos para sair de casa com bolsa, mamadeira e todas aquelas coisas que bolsa de mãe tem. Vi minha mãe me arrumando. Vi minha irmã e minha sobrinha. Muitos pares de mães e filhas desfilaram pela minha memória, mas não me vi entre as mães, só entre as filhas.

Um amigo distante um dia quis me dar um peixe. Ele dizia que me achava "muito solitária naquele apartamento", achava que eu precisava cuidar de alguém. Anos mais tarde, um amigo recente quis me dar um cachorrinho. Ele disse que minha casa é muito arrumada e que preciso de alguma coisa para roer o sofá, rasgar o tapete, bagunçar um pouco. Entre um e outro, vários rios passaram em minha vida, mas a resposta foi a mesma para ambos: “nem pensar, mal consigo cuidar de mim”.

Quando se é jovem, independente, dona do próprio nariz e, principalmente, só, não é possível conceber a possibilidade de cuidar de alguém sem que haja algo em troca – sexo, segurança financeira, um teto, uma boa briga ou alguém para comentar um filme. Quando se é jovem nem sequer vamos ao médico. As salas de espera estão recheadas de crianças e idosos. Jovens como eu só aparecem nas emergências. Ainda sou filha. E quando se é filha, jovem, dona do próprio nariz e feliz por ser a única a ter que comer a própria gororoba, nada no mundo faz mais sentido do que a máxima do sábio cantor Ed Motta: “no kids, no dogs, no problems”.(Ha ha ha)
Mas dizem que isso passa. Será??? (ai!)
(Para Milla Oliveira.)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Sem medo de enriquecer

“Acho contra a natureza que um homem se entenda melhor com seu cão do que com sua esposa, que o ensine a comer e a descomer na hora certa, a responder perguntas e a compartilhar suas penas.”
(Gabriel García Márquez, em “Memórias de minhas putas tristes”, p. 59)

Do banco do carona, ouvi sua boca vomitar barbaridades. Disse que desceria do carro e do alto de seu metro e oitenta para espancar o menino de rua que viesse sujar seu pára-brisa com aquela lavagem imunda. Um estado de choque calou minha boca. Uma covardia baixou minha face. Uma confusão tomou minha mente. Para meu deleite, os meninos passaram e nos ignoraram dentro de seu carro. Foi quando lembrou que só os carros bonitos atraem a atenção, mesmo de meninos de rua. O seu supõe falta de recursos, mesmo para meninos de rua. Uma humilhação o fez sentir preterido. Um despeito o fez cair na real. Não era digno sequer da lavagem imunda.

Do canto da sala, o vi invadir meu espaço. Vi falar, reclamar por muitos e muitos dias, nunca ouvir, exceto para criticar, ou debochar. Nada nunca parecia bom o suficiente. Uma piedade calava minha boca. Depois, um cansaço me ensurdecia. Por fim, uma irritação tomou meu senso. Quando se chega a um ponto insuportável, a mudança é inevitável. Muda-se. A força corre quente pela veia até a ponta da língua: o cuspe, a reação, o deleite. Pior do que a rejeição de meninos desconhecidos, é a da menina que se pensa conhecer.

O prazer de poder encher os pulmões de ar, esticar o corpo, ouvir sua música favorita, colocar a mochila nas costas e ir onde se quer, abrir e fechar os olhos, sem medo de atender o telefone, sem um diabo a quem carregar, sem um vampiro a chupar seu sangue, um espírito de porco a obsidiar a vida de quem só quer andar de leve por aí é a melhor sensação do mundo. Sem medo do fim de uma triste relação, seja de amizade ou qualquer outro tipo de disputa, casamento ou namoro. Qualquer coisa onde o amor não esteja presente lá e cá. Não há caminho sem ele, nem com muito boa vontade.

O bom de subir um muro e olhar sobre ele, é poder enxergar o que virá depois. O super herói não precisa terminar esfarrapado, caminhando solitário pela estrada deserta. Quando se é justo consigo mesmo, a paz é o doce alívio de um caminho de ilusões e decepções, mas repleto de sinais verdadeiros de admiração mútua e companheirismo que só as verdadeiras almas gêmeas conseguem demonstrar das maneiras mais diversas. Toda maneira de amar vale a pena, se for verdadeira.

No silêncio da madrugada, os poucos carros que passam fazem ainda mais barulho. Mas fecho os olhos hoje e durmo em paz.

Foto de Sara Simões

quarta-feira, 14 de maio de 2008

O contrato

Então, amor, o que você acha, hein, se eu viesse logo pra cá? Eu já durmo aqui, já fico aqui no final de semana... Até roupa minha já tem no seu guarda-roupa, escova de dente no armário do banheiro... A gente pode dividir as contas. O que você acha, hein?
Depois de algum tempo: nossa, passar mais tempo com você... parece ótimo, mas...
Mas o quê??? – pela expressão do seu rosto, esperava ver pulos de alegria depois da proposta que acabara de fazer. Uma nuvem de desapontamento pairava sobre sua cabeça.
Sabe o que é, meu bem? Desculpe, mas eu já brinquei de casinha antes. E, depois que acabou, cheguei à conclusão de que o namoro é que é bom. Decidi que só passaria dessa fronteira novamente, se fosse por um relacionamento de verdade.
E o nosso não é?
Bem... estamos descobrindo ainda...
Não estou entendendo, querida. Pensei que aquela carinha que você faz quando eu vou embora fosse vontade de me ter por aqui...
Até é, mas...
Mas, então???
Não me leve a mal, amor... Adoro quando você fica mais tempo, mas eu não preciso dividir o apartamento com ninguém, posso arcar com tudo.
Como assim? Você acha que eu estou te propondo dividir o apartamento? Você não entendeu, estou te propondo morarmos juntos.
Sei...
Você não quer? – perguntou incrédulo.
Tá bom, vou ser mais clara. Essa história de morar junto pra mim já deu. Não cola mais...
O que é isso? Que idéia moderna é essa? Você está querendo me dizer que vamos ser aqueles casais que moram em casas separadas? Desde quando você aprova isso?
Você podia me deixar terminar de falar...
Ok, sou todo ouvidos.
Então, se for pra morar de novo sob o mesmo teto com alguém, tem que ser um homem que acredite no que está fazendo e não um cara que já está entrando em campo pensando em sair antes do jogo terminar. Tem que apostar na jogada. Quero mais que compromisso, quero comprometimento, parceria, cumplicidade, lealdade. Alguém que assine embaixo sem medo.
Assine embaixo?... – ruminou. – Parece até que está falando de um contrato... – arriscou.
Fez-se o silêncio do consentimento.
É isso, meu anjo? Mas que caretice! Um pedaço de papel... Que garantia um papel te dá de que eu vou cumprir com isso tudo? Que garantia um simples documento pode dar do sucesso de uma relação?
Garantia de sucesso? Nenhuma. Mas garante que vamos tentar e que não entramos pensando na facilidade de desistir diante de qualquer obstáculo. Garantia de que é a primeira de uma série de assinaturas que daremos juntos. Garantia de que você não tem medo de arriscar ficar o resto da vida comigo. Garantia de que sabe que um pedaço de papel não vai abalar sua confiança em nós dois. Garantia de que sabe o que está fazendo quando passa seu tempo ao meu lado.
Fez-se o silêncio do pavor de quem não sabe o que pensar e o que dizer.
Olha, você me desculpe, amor. Não quero que se sinta acuado. Eu não estou te pedindo nada. Por mim, tudo bem a gente ficar do jeito que já estamos. Estou feliz assim, mas é que eu quero tentar não dar mais passos em falso.
Tô atrasado, amor.
Não vai tomar café?
Não. Como alguma coisa na rua. Se der, te ligo mais tarde.
Você está chateado comigo?
Não... Beijo.
Depois de dois dias de silêncio dele e de angústia dela, ele toca a campainha e ela atende. Os olhos dela se iluminam.

Quer casar comigo, amor? – disse ele sorrindo.


(Para Wilson & Bianca Domingues)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Medo de enriquecer

Quase me afogo em uma onda de pavor, sempre que pressinto a aproximação de um novo amor. A perspectiva de que finalmente seja definitivo, me aterroriza. Um terror ilustrado por marcas de amor mais profundas e persistentes do que tatuagem. Começo a morrer de saudade dos anteriores mal sucedidos, autosabotagem. Ultimamente, tenho preferido apostar nos erros pela perspectiva da curta duração. Medo de filha sentindo que a vida pode tomar um rumo a qualquer momento. Ou pior, medo de achar que a vida vai dar-lhe o gosto do rumo para perdê-lo novamente em seguida, como já acontecera repentinamente outras vezes. Medo de pai, sentindo que vai perder a filha, fechando a cara.

Mas quando vem, não há medo que o impeça. Não há onda que o afogue. Não há independência ou auto-suficiência que o desencoraje. Não há cara feia que assuste o amor. Ele abre portas. Esvazia gavetas, afrouxa parafusos, desmonta as defesas para abrir espaço e se instalar. Nem ele nem eu sabemos exatamente o que fazemos, nem se queremos. Não enxergamos com clareza ou nitidez. Não pensamos. Deixamos o barco correr ao sabor da corrente até que ela nos leve àquele lugar em que não moraremos mais em nós mesmos e nos tornaremos almas vagando à nossa própria procura no olhar do outro.

Aquele lugar em que contas, trânsito, calor e políticos são apenas figuração de um universo paralelo absolutamente sem importância, diante da textura do cabelo, do cheiro do suor que molha o lençol, do olhar curioso, da mão protetora e, principalmente, do sussurro sem controle que antecede o abraço redentor.

Até que um desperta o outro: “o que você está pensando agora?” e lá se foi o sonho... A mente tenta sacudir sua criatividade pra fora, mas nada poético vem à tona, só sussurros medrosos dão à cara tapas. E nada que, arrependido pela pergunta, o amor dissesse seria capaz de sossegar aquele coração batendo aos pedaços – doidos pra se juntar novamente e começar uma nova história. Os dias vão nascendo sobre noites de papos mal dormidas que se acumulam. Cada fio grisalho é uma noite dessas, uma linha nova para a história que ela conta, um verso novo para o poema que ele cria, uma nova página para o romance que a vida transforma em realidade inacreditável aos olhos dos outros, mas muito palpável aos nossos. Bem-vindo, ao amor que já é ou não.
Imagem retirada do site http://www.apsi.org.pt/index.php. Thanx, Google!

sábado, 19 de abril de 2008

Tempo perdido?

“Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo tempo do mundo...”
(Renato Russo)

Acordei chateada depois de uma noite mal dormida por conta do funk de uns vizinhos barulhentos. Acordei triste por causa de uma esperança frustrada. Acordei, fazer o quê? Tomei um banho e me dei o dia. Fui à praia. Os vizinhos caíram no esquecimento, mas a tristeza persistiu. Perambulei pelas horas e pelas ruas, procurando preenchê-las e tentando não pensar no espinho que me incomodava, mas já pensando. The girl with a thorn on her side.

Tentava me convencer a aproveitar melhor meu momento de liberdade, a observar com atenção o vento batendo nas árvores, a brisa do mar tocando fresquinha na pele ardida, a criatividade dos ambulantes, as crianças se divertindo, a Piauí que carregava comigo. Levantei e fui embora. Pele queimada, barriga roncando, testa franzida, pensamento anuviado, coração pesado... Passos rápidos.

Fui ver minha mãe. Conversando sobre as coisas da vida, me distraí e, naqueles momentos de jeito simples, esqueci do espinho. Levantei e fui embora. Cabeça leve, rosto tranqüilo, olhos baixos, passos lentos, tentando evitar o bater solitário da porta que deixaria a rua cheia e iluminada para trás.

Encontrei afazeres e me ocupei deles, o espinho voltava a latejar. As notícias da noite passaram por meus olhos, mas não entraram por um ouvido nem por outro. O universo de máquinas de lavar, ferros de passar, esmaltes de unha, e-mails tomou uma forma onírica, bem diagnosticada pela psicanálise como ocorrências possíveis em lapsos de atenção.

Só no final da noite, começo de um novo dia, foi que uma música de um programa de tv me despertou daquela aura etérea. Os primeiros acordes de Tempo Perdido trouxeram à memória, em questão de segundos, sensações vividas numa época remota em que todas as paixões infantis iriam durar para a vida toda até o final de semana seguinte. A epifania gerada pela canção de Renato Russo não me libertou da tristeza que me atormentou por toda aquela semana, mas me avisou que as paixões ainda são infantis e, até o final da próxima semana, tudo pode mudar novamente. Relaxei. O espinho ainda dói, mas isso passa. Amanhã voltarei à praia.
A ilustre arte que melhora esta coluna é "La persistencia de la memoria" (ou "Los relojes blandos" ou "El tiempo derretido"), de Salvador Dalí. Thanx, man!

terça-feira, 1 de abril de 2008

Chama no peito

Entrei em sala, naquela segunda-feira, e tive uma conversa muito franca com as turmas. Três naquela noite. Cerca de cento e vinte alunos jovens, adultos e idosos. Trabalhadores como eu. Contei a eles que, apesar de ser do conhecimento de todos o fato de o magistério ter virado uma profissão de fé, não é exatamente de fé que um professor se alimenta, não é com fé que ele se veste, mas é com ela que educa seus filhos e os dos outros. Todos riram. Todos entenderam.

Estávamos no mesmo barco, com ou sem diploma. À deriva de governos e de um sistema econômico desumano que vêm desqualificando classes inteiras de profissionais concursados, também conhecidos como os “primos pobres” entre os servidores públicos –– os que lidam diretamente com as camadas mais necessitadas da população.

Sempre ouço pessoas reclamando de desorganizadas repartições, clamando pela tão sonhada privatização do serviço público. Lembro dessas pessoas quando passo horas na fila de algum banco privado para ser destratada por atendentes lerdíssimos e incompetentes e me arrepio quando vejo as altas tarifas cobradas das contas-salário para financiar o caviar de banqueiros.

Lembro dessas pessoas, também, quando meus velhos vão aos médicos do plano de saúde que custa uma fortuna e não conseguem atendimento de qualidade (porque nem todos os médicos conseguem ser aprovados em concursos públicos), nem em tempo justo, ou quando precisam pagar por fora um exame caríssimo porque o plano não cobre.

Também lembro do “mito da privatização” quando chega a conta da companhia telefônica (privada) com cobranças por ligações que não fiz e uma assinatura que sai mais caro do que o número de ligações que faço ou que oferece uma conexão ridícula com a internet. Lembro e me indago se o serviço público seria merecedor de tantas reclamações se contasse com a mesma infra-estrutura e privilégios de que gozam tantas empresas privadas.

Fico tentando entender a lógica de pessoas que reclamam do serviço público e, mesmo com tantas opções no mercado, correm para bancos públicos na hora de financiar sua casa própria; ou colocam os filhos para disputar vagas em conceituados colégios e universidades públicas.

Sigo sem compreender porque tantas pessoas, entre a massa dos que imploram por privatização, gastam porcentagens significativas de seus salários investindo em concursos para cargos públicos...

Voltando à noite de segunda-feira, expliquei aos alunos que interromperia o programa vigente até que o sindicato dos professores suspendesse o movimento contra a indecente proposta de aumento salarial oferecida pelo mesmo governo que gastou milhões no Pan-americano. Os textos didáticos a serem trabalhados em língua inglesa seriam substituídos por dez frases de conteúdo social que tinham como objetivo discutir em sala a situação da educação pública no estado.

Após ouvir minhas explicações, fui questionada se fechar a escola não causaria maior impacto. E depois de refletirmos juntos, todos concordamos que se estivéssemos em casa, apenas o governo lucraria com a economia de luz, merenda escolar, passagens de ônibus e desconto no salário dos professores. Ao contrário, estar em sala discutindo a distância entre a escola que gostaríamos de ter e a que de fato temos tira do atual governo boas chances de voltar a exercer cargos que dependam dos votos desses alunos. E a sensação do poder do voto nas mãos reacendeu neles um lampejo de esperança de ainda haver alguma chance de mudança.

Os alunos foram tocados, mas nas outras salas de aula daquela e de outras escolas, centenas de profissionais que não pagam com fé suas contas todo mês já haviam perdido a tal esperança e jogaram suas toalhas. Desistiram do movimento, de melhores condições de trabalho, de melhores salários, dos alunos, de si mesmos e da educação. A chama, que mesmo depois de uma década de serviço público ainda queima meu peito e minhas idéias, já se apagou em cada um deles. Que pena...

Em tempo: nas poucas linhas que a imprensa-classe-média do Rio de Janeiro dedicou ao movimento de servidores estaduais na época, leu-se muito sobre a interrupção do trânsito, causada pelas manifestações, e sobre a ausência dos policiais civis dos seus postos de trabalho. O medo da violência preocupa mais do que a sua origem: a qualidade de vida e de educação inexistentes. Cabe lembrar aos formadores de opinião que o mesmo movimento também foi composto de médicos e professores.

A arte que ilustra esta coluna é de Flavio L. Nunes Abal. Thanx, boy!

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Marx não imaginou isso


E mais essa agora... Na mesa de um bar, aquela moça que mal conhecia resolvera empurrar para cima de mim seus questionamentos emocionais. Pertinentes, vá lá! Mas logo eu? O que sei eu, tão cheia de dúvidas quanto ela. Contou-me com pormenores seus azares afetivos, sempre sob a luz da luta de classes. Falou de um ex-namorado pobretão a quem encontrou, poucos dias depois do rompimento, já acompanhado, vestido da cabeça aos pés com os presentes que recebera dela.

E da última desilusão – um belíssimo rapaz que a procurava para afastar o tédio, satisfazer suas necessidades físicas, alimentar o próprio ego, e ainda agia como se favor fizesse estando ao lado dela. Um homem de parcos recursos por quem ela inúmeras vezes havia se despido de suas convicções e preferências. E, ainda por cima, a maltratava repetidamente na intenção de induzi-la a terminar o romance para poder curtir outras mulheres sem culpa.

Quanto mais ouvia, menos acreditava nos meus ouvidos. Aquela mulher culta, estimada e admirada pelos amigos, bem empregada e independente não combinava com o que sua boca chorosa dizia. Eu não conseguia articular uma palavra. E nem tentava. Não tinha coragem. Não sabia se me indignava com ela ou com a burrice dos homens que passaram por sua vida sem reconhecer com quem estiveram. Até então, imaginava que homens pegavam senha para estar com ela, mas a história era outra.

Aquela mulher, do alto de suas convicções políticas, não sabia se, ao se valorizar, estaria se superestimando e menosprezando homens de condição inferior. Ou, se para assuntos de amor, deveria abandonar sua educação socialista e se relacionar apenas entre iguais, a elite intelectual de sua geração.

Ela dizia que pessoas são pessoas, não importando de que classe social vinham, que educação tivessem recebido ou em quantos cômodos viviam. Pensava mesmo que se sentia mais à vontade entre operários, empregados e subalternos. Talvez, um certo complexo de inferioridade a motivasse a estar sempre entre os menos favorecidos. Ou, quem sabe, algum fetiche com os homens da classe operária...

Contudo, depois de tantas desilusões, começava a mudar de idéia sobre os homens que encontrara. Se todos seriam motivo de aborrecimento e lágrimas, por que não desfrutar de um pouco de conforto das próximas vezes? Jantar e não ter que pagar a conta; não precisar dirigir; ser levada para casa (ou melhor ainda, para outra casa); ganhar presentes, em vez de dar; ouvir elogios, em vez de fazer; perguntar ao invés de responder. O mundo podia ser mais suave. Já olhava com simpatia para os vizinhos de bairro e os colegas de trabalho. E, à medida que a cerveja ia fazendo efeito, conseguia até flertar com os rapazes da mesa ao lado. Saí antes de ver o desfecho de tantas lamentações misturadas a tulipas de cerveja e considerações socioeconômicas. E até hoje, penso naquela mulher, sem entender em que momento Marx e amor se misturam.

A ilustração que melhora esta coluna é de Alexandre Antunes. Thanx, guy!