sábado, 19 de abril de 2008

Tempo perdido?

“Todos os dias quando acordo
Não tenho mais o tempo que passou
Mas tenho muito tempo
Temos todo tempo do mundo...”
(Renato Russo)

Acordei chateada depois de uma noite mal dormida por conta do funk de uns vizinhos barulhentos. Acordei triste por causa de uma esperança frustrada. Acordei, fazer o quê? Tomei um banho e me dei o dia. Fui à praia. Os vizinhos caíram no esquecimento, mas a tristeza persistiu. Perambulei pelas horas e pelas ruas, procurando preenchê-las e tentando não pensar no espinho que me incomodava, mas já pensando. The girl with a thorn on her side.

Tentava me convencer a aproveitar melhor meu momento de liberdade, a observar com atenção o vento batendo nas árvores, a brisa do mar tocando fresquinha na pele ardida, a criatividade dos ambulantes, as crianças se divertindo, a Piauí que carregava comigo. Levantei e fui embora. Pele queimada, barriga roncando, testa franzida, pensamento anuviado, coração pesado... Passos rápidos.

Fui ver minha mãe. Conversando sobre as coisas da vida, me distraí e, naqueles momentos de jeito simples, esqueci do espinho. Levantei e fui embora. Cabeça leve, rosto tranqüilo, olhos baixos, passos lentos, tentando evitar o bater solitário da porta que deixaria a rua cheia e iluminada para trás.

Encontrei afazeres e me ocupei deles, o espinho voltava a latejar. As notícias da noite passaram por meus olhos, mas não entraram por um ouvido nem por outro. O universo de máquinas de lavar, ferros de passar, esmaltes de unha, e-mails tomou uma forma onírica, bem diagnosticada pela psicanálise como ocorrências possíveis em lapsos de atenção.

Só no final da noite, começo de um novo dia, foi que uma música de um programa de tv me despertou daquela aura etérea. Os primeiros acordes de Tempo Perdido trouxeram à memória, em questão de segundos, sensações vividas numa época remota em que todas as paixões infantis iriam durar para a vida toda até o final de semana seguinte. A epifania gerada pela canção de Renato Russo não me libertou da tristeza que me atormentou por toda aquela semana, mas me avisou que as paixões ainda são infantis e, até o final da próxima semana, tudo pode mudar novamente. Relaxei. O espinho ainda dói, mas isso passa. Amanhã voltarei à praia.
A ilustre arte que melhora esta coluna é "La persistencia de la memoria" (ou "Los relojes blandos" ou "El tiempo derretido"), de Salvador Dalí. Thanx, man!

terça-feira, 1 de abril de 2008

Chama no peito

Entrei em sala, naquela segunda-feira, e tive uma conversa muito franca com as turmas. Três naquela noite. Cerca de cento e vinte alunos jovens, adultos e idosos. Trabalhadores como eu. Contei a eles que, apesar de ser do conhecimento de todos o fato de o magistério ter virado uma profissão de fé, não é exatamente de fé que um professor se alimenta, não é com fé que ele se veste, mas é com ela que educa seus filhos e os dos outros. Todos riram. Todos entenderam.

Estávamos no mesmo barco, com ou sem diploma. À deriva de governos e de um sistema econômico desumano que vêm desqualificando classes inteiras de profissionais concursados, também conhecidos como os “primos pobres” entre os servidores públicos –– os que lidam diretamente com as camadas mais necessitadas da população.

Sempre ouço pessoas reclamando de desorganizadas repartições, clamando pela tão sonhada privatização do serviço público. Lembro dessas pessoas quando passo horas na fila de algum banco privado para ser destratada por atendentes lerdíssimos e incompetentes e me arrepio quando vejo as altas tarifas cobradas das contas-salário para financiar o caviar de banqueiros.

Lembro dessas pessoas, também, quando meus velhos vão aos médicos do plano de saúde que custa uma fortuna e não conseguem atendimento de qualidade (porque nem todos os médicos conseguem ser aprovados em concursos públicos), nem em tempo justo, ou quando precisam pagar por fora um exame caríssimo porque o plano não cobre.

Também lembro do “mito da privatização” quando chega a conta da companhia telefônica (privada) com cobranças por ligações que não fiz e uma assinatura que sai mais caro do que o número de ligações que faço ou que oferece uma conexão ridícula com a internet. Lembro e me indago se o serviço público seria merecedor de tantas reclamações se contasse com a mesma infra-estrutura e privilégios de que gozam tantas empresas privadas.

Fico tentando entender a lógica de pessoas que reclamam do serviço público e, mesmo com tantas opções no mercado, correm para bancos públicos na hora de financiar sua casa própria; ou colocam os filhos para disputar vagas em conceituados colégios e universidades públicas.

Sigo sem compreender porque tantas pessoas, entre a massa dos que imploram por privatização, gastam porcentagens significativas de seus salários investindo em concursos para cargos públicos...

Voltando à noite de segunda-feira, expliquei aos alunos que interromperia o programa vigente até que o sindicato dos professores suspendesse o movimento contra a indecente proposta de aumento salarial oferecida pelo mesmo governo que gastou milhões no Pan-americano. Os textos didáticos a serem trabalhados em língua inglesa seriam substituídos por dez frases de conteúdo social que tinham como objetivo discutir em sala a situação da educação pública no estado.

Após ouvir minhas explicações, fui questionada se fechar a escola não causaria maior impacto. E depois de refletirmos juntos, todos concordamos que se estivéssemos em casa, apenas o governo lucraria com a economia de luz, merenda escolar, passagens de ônibus e desconto no salário dos professores. Ao contrário, estar em sala discutindo a distância entre a escola que gostaríamos de ter e a que de fato temos tira do atual governo boas chances de voltar a exercer cargos que dependam dos votos desses alunos. E a sensação do poder do voto nas mãos reacendeu neles um lampejo de esperança de ainda haver alguma chance de mudança.

Os alunos foram tocados, mas nas outras salas de aula daquela e de outras escolas, centenas de profissionais que não pagam com fé suas contas todo mês já haviam perdido a tal esperança e jogaram suas toalhas. Desistiram do movimento, de melhores condições de trabalho, de melhores salários, dos alunos, de si mesmos e da educação. A chama, que mesmo depois de uma década de serviço público ainda queima meu peito e minhas idéias, já se apagou em cada um deles. Que pena...

Em tempo: nas poucas linhas que a imprensa-classe-média do Rio de Janeiro dedicou ao movimento de servidores estaduais na época, leu-se muito sobre a interrupção do trânsito, causada pelas manifestações, e sobre a ausência dos policiais civis dos seus postos de trabalho. O medo da violência preocupa mais do que a sua origem: a qualidade de vida e de educação inexistentes. Cabe lembrar aos formadores de opinião que o mesmo movimento também foi composto de médicos e professores.

A arte que ilustra esta coluna é de Flavio L. Nunes Abal. Thanx, boy!