terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Da janela da minha cozinha

Aquela sexta-feira deveria ter sido de festa. Formatura dos alunos que superaram todos os obstáculos e dificuldades para terminar o segundo grau. Mas a chacina, resultado dos conflitos da noite anterior, deixou o saldo de vítimas espalhadas justo no portão da escola, e a tão aguardada festa não pôde acontecer.

O episódio descrito acima foi recente, e – a despeito do dia festivo – todos os dias, cenas como essa acontecem por aí, por aqui, acolá. Entretanto, a frequência com que ocorrem em bolsões de pobreza a que nos acostumamos chamar de "favela", modernamente rebatizados de "comunidades", é bem maior para alívio dos que lá não moram e dos que se acham inatingíveis.

Por questões geográficas e pela natureza do seu povo, o Rio de Janeiro é um dos lugares do País e do mundo onde maior mistura há entre classes sociais. Contudo, uma certa hipocrisia permite aos cariocas a boa convivência entre patrões e empregados, nas areias das praias, nas quadras de samba, nos estádios de futebol, apesar da pouca importância dedicada ao morar mal, especialmente por aqueles que moram muito bem.

Contra a maré, nunca consegui entrar em uma favela sem me sentir incomodada com as condições de vida dos que ali moram. Pouco me importa se alguns dizem estar ali porque gostam. Pouco me importa se há, em algumas casas, um conforto que no meu apartamento não há. Se há ar condicionado em todos os cômodos, apesar das baixas contas de luz. Se há um carro parado na porta. Favela é sinônimo de ocupação irregular e desordenada de uma área mal explorada, tanto para quem está dentro quanto para quem está fora dela.

Para os que moram fora, favela é o mesmo que bagunça e favelado virou sinônimo de gente de maus modos. Se é verdade que o homem é resultado do meio, o fim da favela seria a chave para uma equação aparentemente insolúvel.

Mesmo que haja pessoas bem intencionadas tentando diluir o preconceito contra ela, o que realmente importa é que os trabalhadores que lá moram merecem condições dignas de habitação. Saneamento, segurança, áreas de lazer, escola de qualidade, centros culturais, casas bonitas, bem acabadas, jardins, asfalto, calçamento, crianças brincando nas ruas sem a ameaça de tomar um balaço à queima roupa vindo de uma "autoridade" oficial (porque foi-se o tempo em que favelados morriam de bala perdida).

Tentou-se há coisa de vinte anos colocar escolas em favelas. A classe média reagiu de forma tão indignada que até hoje alguns jornais cariocas estampam nas primeiras páginas o baixo rendimento de tais escolas, como se prédio e locação fossem os responsáveis exclusivos. Como se um ambiente conturbado e a baixíssima qualidade de vida dos alunos não existissem.

Se por um lado, "o Rio de Janeiro todo é uma favela", como diz a letra dO Rappa, por outro, temos a maior rede de escolas públicas do país. A sua ineficiência gritante também seria um reflexo das tais escolas construídas dentro de favelas? Ou Tostines vende mais porque está sempre fresquinho? Isto é, a escola é que faz o meio ou o meio age sobre a escola?

É mais do que preciso, é urgente, uma política séria de habitação para o Rio de Janeiro e para o Brasil em que todos ganhem, o governo, a iniciativa privada, mas, principalmente, o povo. Porque isso é possível desde que haja vontade política e verdadeira de melhorar as condições de vida da população.

Voltando de ônibus de Angra dos Reis, vejo já no nosso município muita área vazia onde poderiam ser construídas habitações para a população que se dispusesse a sair da miséria de suas comunidades. O sucesso da procura a programas recentes de financiamento habitacional da Prefeitura comprova que muitos querem, sim, morar um pouco mais distante, se isso significar a realização do sonho da casa própria. O que fica faltando a essas áreas vazias é uma infra-estrutura bem planejada que inclua comércio e serviços, ao invés de simplesmente despejar o povo e isolá-lo bem longe da “civilização”.

Da janela da minha cozinha, vejo um prédio de 3 andares, com 5 ou 6 apartamentos por andar, absolutamente abandonado. Se o dono do prédio o vendesse para o governo, e a Caixa o financiasse a preços populares, 18 famílias teriam um bom lugar para morar. Da janela da minha cozinha... O que você da sua janela?

"Favela, só quem vive nela sabe como ela é
As roupas na corda representam a bandeira da favela
São os ternos dos burgueses
Dependurados, secando ao sol do subúrbio
Os que trabalham as leis pra Dona Maria,
Principalmente pensando em si próprios,
Não beneficiam, não,
Quem lava e passa sua roupa todo dia
Pra manter o luxo, ostentando o vício,
Ele vai se corrompendo, vai deixando o lixo
Pra Dona Maria limpar"
("Favela" - Cidade Negra, em Enquanto o mundo gira)
Foto minha.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Manifesto à bravura

Esta manhã, acordei para ver o que parecia ser a última gota do amor que tinha debaixo das mangas acabar. Depois disso, voltei a dormir. E a tristeza me fez sonhar com um par de calças que se desprendiam do varal e caíam no asfalto. Os carros passavam por cima, atropelando o par. Um possível significado para o sonho. Corri o mais que pude para tirar aquelas peças do meio da rua e, a seguir, entrava às pressas num mercadinho que já estava fechando para comprar um único bombom. Logo depois, um telefone me chamava e, do outro lado da linha, alguém me contava que recebera bombons seus, prova irrefutável de culpa pela visita que me fizera nesta manhã.

“No dia em que você foi embora eu fiquei sentindo saudades do que não foi, lembrando até do que eu não vivi, pensando em nós dois...” Soube que viciados em heroína também têm sonhos como esse. Talvez o vício seja uma analogia bem apropriada.

Olhando um caminhão que passou há pouco transportando enormes espelhos e me trazendo de presente reflexos do que minha vista não alcançava, me ocorreu a ideia de tecer um manifesto à bravura. À bravura dos que não se deixam parar pelo medo e pela covardia. À bravura dos que sabem zunir longe o sapato que aperta. Dos que arrancam a pedradas o dente que dói. Dos que não têm medo de enxergar e, uma vez que enxergam, veem e, uma vez que veem, decidem.

Resolvi tecer o manifesto movida pela minha própria ignorância, que não me permite compreender a covardia. Movida também pelo meu individualismo, que me fez decidir ser livre até querer me prender a alguém. Movida pela ambição, que não me deixa aceitar a mediocridade de ter a felicidade nas mãos e deixá-la partir. Movida pela inquietação, que me impede de suportar a acomodação de viver uma vida morta e enterrada.

A todos que, como eu, entendem que a vida não vale nada sem a paixão de vivê-la, um brinde! A todos que entendem que a paixão não vale nada se não for escancarada e plena. A todos que não querem viver pela metade e, por isso, vivem intensa e conscientemente cada momento do presente, muitos brindes. Um ano novo, repleto de possibilidades, nos espera.

Agora só quero que se calem todos os que cantam o amor. Quero a guitarra elétrica e ardida de Lúcio nas veias. O som da minha banda favorita berrando nos ouvidos para não me deixar esquecer que o que realmente importa está comigo. O resto não tem importância alguma.

Feliz aniversário, mundo velho de guerra.


“...E quando estou contigo eu quero gostar
e quando estou um pouco mais junto eu quero te amar
e aí te deitar de lado como a flor que eu tinha na mão
E a esqueci na calçada só por esquecer
Apenas porque você não sabe voltar pra mim.
Oh, Risoflora, vou ficar de andada até te achar...
Oh, Risoflora, não me deixe só...”
(“Risoflora”, Chico Science)


Citação a Lenine no segundo parágrafo, “O último pôr do sol” (http://vagalume.uol.com.br/lenine/o-ultimo-por-do-sol.html).