quarta-feira, 22 de abril de 2009

Já posso ouvir o silêncio

Cai a noite da sexta-feira santa. Depois de dois dias de amidalite, os novos remédios finalmente resolvem mostrar sinal de eficácia. Estendo na cama o melhor lençol de algodão. As fronhas cheiram a limpeza. Do quarto imerso na penumbra, ecoam notas esvoaçantes de uma canção celta. O banho morno antecipa o clima para o descanso, mais do que merecido, necessário. A garganta ainda dói. Os ouvidos ainda doem. A cabeça lateja. Mas está tudo pronto. Deito. Durmo.

Minutos depois, num sobressalto, ouço os primeiros acordes de um violão altíssimo, acompanhados de uma estridente microfonia que estremece as janelas do quarto. Do restaurante no andar térreo, os clientes gritam e aplaudem. Com o passar das horas, cubro a cabeça com os travesseiros. Ponho fones de ouvido, aumento o volume, tiro os fones de ouvido. Faço ioga. Ligo a tv, desligo a tv. Choro. A febre reaparece. O corpo já não aguenta e adormece.

Minutos depois, num sobressalto, meninos de rua esmagam com os pés latas de cerveja e refrigerante. Ali na calçada embaixo da minha janela. A poucas horas da manhã do sábado de aleluia. Espero. Uma por uma... Espero. Elas nunca acabam... Espero. Eles se divertem. Amanhece o dia, a cidade acorda, e meus olhos denunciam: Judas foi malhado esta noite.

Tempos atrás, havia a tradição de silenciar com a lembrança das torturas e da morte na cruz. O clima solene e respeitoso, em pelo menos uma sexta-feira no ano, de quem demonstra gratidão pelo gesto de generosidade e amor ao próximo, aos poucos tem ficado para trás, pelos bárbaros habitantes do planeta, em nome de lucro e diversão. Sinal dos tempos?

A semana passou. Na sexta-feira seguinte, muito cedo, acordo num sobressalto. No telefone entendo “mãe” e “hospital”. Enquanto troco de roupa, aviso os irmãos. Saio sem pensar. Tudo o que pôde ser feito, foi feito. O dia passa em frações de segundo. Ninguém sente fome, nem sono, nem cansaço. Só medo. Ela reage. O dia acaba. Todos voltam, mas ela fica. É preciso mais do que um enfarto, mais do que um edema, para abater uma mulher como ela. Minha mãe! Quisera eu ser forte assim. Por muito menos, perco o sono e choro.

Cai a noite desta longa sexta-feira. Mais tranquila, estendo na cama lençóis que cheiram a limpeza. O banho morno começa a aliviar o estresse do dia. A música no quarto acaba. Fecho os olhos e, bem suave, ao fundo, percebo o sutil violão que vem do restaurante no andar térreo. Vozes e aplausos elegantes saúdam e agradecem a boa música recém-tocada. Queria ouvir mais um pouco, mas o corpo não aguenta e adormece. O clima de civilidade perdura e anuncia que o mundo está melhorando. Um novo dia amanhece e traz com ele a sensação de que no final tudo vai acabar bem.

P.S.: Dedico a palavra “civilidade” aos que gerenciaram o restaurante do andar térreo na noite do dia 17/04/2009, pelo exemplo de atos que os cidadãos adotam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração, boas maneiras e cortesia.