domingo, 19 de julho de 2009

Não era pra rir

“Mas se com a idade a gente dá para repetir certas histórias, não é por demência senil, é porque certas histórias não param de acontecer em nós até o fim da vida.”
(Buarque, Chico. Leite derramado, Companhia das Letras, p. 184.)

Desde pequena, nunca achei graça ao ver gente caindo. Nem quando era uma piada com palhaços no picadeiro. Tombos me constrangem, me fazem sentir pena, me preocupo ao ver uma pessoa caída. Machucou? Consegue levantar? Posso ajudar?

Há muitos anos, ainda criança, “vi” minha mãe cair. Ela segurava minha mão dentro da dela. Como sempre, eu andava distraída e quando percebi um movimento diferente ela já estava ali de cabeça baixa, fitando os joelhos sem entender o que se passava. Em volta, os que viram riram. Tentei ajudá-la como pude. Quando se levantou, fingi que nada havia acontecido e seguimos. Eram os primeiros sinais da artrite.

Há muitos anos, já adulta, chovia, e eu precisava correr para apanhar um ônibus que estava para sair. Patinei nas pedras portuguesas da Cinelândia. Caí de joelhos. Em volta, o namorado apontava para mim e ria. Tentei me ajudar como pude. Desta vez, não deu para fingir que nada acontecera. Eram os primeiros sinais do pontapé que ele levaria meses mais tarde.

Continuei a vida sem achar graça do óbvio. Ao contrário da maioria esmagadora dos amigos, nunca curti beber em shows (ou fora deles). Amo música e gosto de estar atenta aos detalhes das apresentações dos meus artistas favoritos. Amo a vida e gosto de estar atenta aos detalhes inéditos de cada dia. Nerd? Careta? Sei lá. Hoje penso que posso estar poupando alguns anos de vida... O futuro dirá.

Em compensação, há situações absolutamente inadequadas que me causam o maior deleite. Confusões mentais, por exemplo. Adoro lembrar dos filmes “mais marcantes” que já vi. Tento contá-los a um amigo, mas não lembro o título, nem os nomes dos atores, muito menos dos diretores, mas lembro da cor do sapato que a mocinha usava ao entrar no banheiro da lanchonete de beira de estrada. Mas peraí, essa lanchonete era de outro filme...

Outra situação corriqueira ocorre quando alguém me encontra na rua e diz: “– Oi, tudo bem? Há quanto tempo...” E agora, José? Pareço personagem de crônica do Luis Fernando Veríssimo, recorrendo a estratégias detetivescas, estudando cada palavra do ser à minha frente para tentar descobrir de onde o conheço. É meu aluno? Estudamos juntos? Mora na minha rua? Trabalhou comigo? Depois de dias de uma agonia curiosa, vejo a pessoa uniformizada dentro de uma agência do correio...

A companheira de quarto da minha mãe no hospital, Dona Maria, tinha histórias ótimas sobre a infância, sua mãe, sua avó, o interior, a roça, espíritos, intuições e simpatias com sopros e nós. Mas era a, digamos, desconstrução cronológica o que mais me interessava. Não fosse pela presença da irmã da autora, verdadeira testemunha ocular da história, a montagem dos cacos dessas fábulas fabulosas teria ficado a cargo da minha própria imaginação. Rimos muito eu, minha mãe, dona Maria e sua irmã mais nova naquele quarto de hospital. Bizarro, não?

Um belo dia e várias colegas de quarto depois, tive a idéia de ler para minha mãe uma coletânea de crônicas de Drummond. E, mais uma vez, o silêncio entediado daquele hospital foi cortado por deliciosas gargalhadas arrancadas pelas inusitadas situações magistralmente descritas pelo eterno poeta, ainda que em prosa.

Já nos últimos dias de internação, aproveitava as longas viagens de ônibus para rir da decadência física e familiar de um velhinho secular que insistia em contar e recontar seus feitos e fiascos num leito de hospital e nas páginas de “Leite Derramado”. E mesmo tendo frequentado um hospital por muito mais tempo do que desejava, não pude deixar de rir deste cacoete que já começo a notar nos meus pais e em alguns de seus amigos muito antes de completarem cem anos.

Acho graça quando me contam várias vezes a mesma história e se surpreendem quando antecipo o final. “Não, espera, deixa ver se eu adivinho o que aconteceu...” e caímos na risada. “Eu já tinha te contado essa?” “– Algumas vezes.” Tento encerrar a questão. Não é culpa deles se não prestam mais atenção ao que dizem, onde guardam os óculos ou a nota da farmácia. Prestaram muita atenção durante muito tempo, já podem relaxar. Deixa que a gente cuide disso agora...
“Não é culpa minha se os acontecimentos às vezes me vêm à memória fora da ordem em que se produziram. É como se, a exemplo da correspondência do doutor Blaubaum, algumas lembranças ainda me chegassem de navio, e outras já pelo correio aéreo.” (Idem, pág. 188)