terça-feira, 1 de junho de 2010

Formação de quadrilha

João era um cara bonito de doer. Ele sabia que era irresistível e podia ter quem quisesse. Exceto a mulher que amava, justamente porque Teresa não o queria. Enquanto isso, ia se virando como podia: pegava todas que se permitissem. E muitas se permitiam. Nesse ritmo, machucava muita gente porque era apaixonante, mas não era apaixonável. João se entediava com a facilidade, não dava valor, talvez por isso sofresse por Teresa.

João tinha um vizinho chamado Raimundo, um cara batalhador, cumpridor de suas obrigações, pagava as contas em dia. Também no amor, cumpria bem suas funções, era um homem respeitador, sério. Homem para casar. Namorava Maria, mas ainda tinha esperança de voltar a se apaixonar um dia. Enquanto isso, ia levando a vida interpretando seu papel, agindo de acordo. Um dia de cada vez, até que a vida acabasse.

Num bairro próximo dali, Joaquim agonizava. Sua vida acabara há muito tempo, só que ele havia notado. Já não saía de casa. Não falava com os amigos mais chegados. Tentava cavar espaço em ambientes desconhecidos, mas sempre alguém tentava se aproximar. Nem a solidão lhe era permitida. Joaquim se considerava a imagem do fracasso. E tudo isso começou quando Lili desistiu de seu pessimismo e o pediu para partir. Ele teve que voltar para a velha casa, a velha mãe, o velho bairro, a velha vida nova.

No afã de pagar suas contas, Raimundo não notava os suspiros de Teresa. Ela admirava a retidão de caráter, a disciplina, o caminhar austero de Raimundo. Até perdoava a insensibilidade para seus olhares e sorrisos. Sabia que isso vinha no pacote. Acreditava que se um dia tivesse alguma chance, possíveis rivais também padeceriam com olhares não correspondidos. Essa segurança era seu sonho de consumo. Enquanto isso, ia esperando algum sinal. Um sorriso inesperado, um bom dia mais demorado, alguma amostra de que Maria pudesse ser substituída. Esperava já há 3 anos.

Apesar de se esforçar para se manter só, Joaquim acabava chamando atenção de mulheres transbordando de carinho e carentes de atenção. Uma delas era Maria, desconfiada do amor burocrático de Raimundo, não conseguia não notar a solidão de Joaquim. Só não a sabia voluntária. Tinha pena, queria ajudar, mais do que isso até. Mas ele não deixava, se esquivava. E Maria se sentia cada vez mais só. Seu carinho acumulado doía no peito como leite empedrado de mãe.

Lili tinha consciência da dor de Joaquim, mas entre a dor dela e a dele, ela preferiu a dele. Assim que ele partiu, ela fez as malas e foi ser feliz. Viajou, conheceu novas culturas, novos lugares e novos homens, se cansou de todos e percebeu que ninguém a satisfaria. Decidiu construir um mundo em que ela se bastasse, fechou a porta e foi viver lá dentro. A vida era divertida. De vez em quando, abria uma janela e deixava alguém mais entrar. Mas logo a porta reabria e Lili tinha todo o espaço só para si novamente.

Um dia, Lili foi designada para um projeto no mesmo escritório de Raimundo. A liberdade dela o enebriava. Perto dela, Raimundo se pegava pensando em possibilidades nunca antes imaginadas. Ao perceber o novo caminhar daquele homem antes tão rígido, Teresa se deu conta de que não era a causa daquela mudança. Desesperada, se despediu de todos e entrou para um convento. João bem que tentou dissuadi-la, mas ao ver que não conseguiria, arranjou uma transferência no emprego e foi tentar a vida em outro país.

Ao despedir-se do amigo, João diz a Raimundo para aproveitar a vida antes que ela passasse. Raimundo sorriu e concordou. Correu de volta para o escritório, decidido a declarar-se a Lili. Em um cruzamento, a pressa o fez ultrapassar o sinal sem ver o carro que vinha na direção contrária. A história acabava ali para Raimundo, sem que a esperança de um novo amor chegasse a se concretizar.

Num bairro próximo dali, agonizando, Joaquim é levado para o hospital, mas a dose de remédio havia sido forte demais e seu corpo já tão debilitado por meses de sofrimento diário não resistiria. Maria, que já amargava a indiferença de Joaquim, perderia Raimundo de qualquer maneira, além da habilidade de dosar o carinho oferecido aos homens que viessem a se aproximar. Assustava-os.

Fernandes, o dono do escritório, ficou impressionado com os resultados do projeto, quis conhecer sua executora e se encantou com Lili. Casaram-se. Viajaram o mundo inteiro e esbarraram com João em Nova Iorque. Lili o reconheceu de uma foto de amigos que vira na mesa do falecido Raimundo. João ficou triste ao saber do amigo morto, mas a vida continuava.

O poeta descreveu o rolo todo assim:

"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou pra tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história."

(Poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade)