quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Presa à liberdade

A liberdade exige escolhas muitas vezes difíceis. Quem está preso numa cela, num emprego, num relacionamento não tem ideia do que ela representa. É preciso ter coragem para ser livre. Há um preço a pagar pela oportunidade de estar solto sem qualquer obstáculo que tolha os movimentos, ainda que a própria liberdade o faça.

Há meses, a jornalista Gloria Maria concedeu entrevista em que a palavra “liberdade” foi repetida inúmeras vezes. Segundo ela, essa fixação remete a uma origem histórica por sentir-se pioneira entre um povo retirado à força de sua terra e subjugado em todas as partes do mundo para onde foi levado e até mesmo em seu próprio continente. Não há dúvidas de que se trata de uma mulher que, há décadas, vem mantendo com pulso forte e muita integridade uma carreira bem sucedida apesar de sua cor e de sua origem. Não há escândalos envolvendo seu nome. Não há qualquer fato que denigra sua imagem. Um excelente exemplo de mulher livre, mas só ela sabe os preços que pagou por suas escolhas.

Há quem prefira seguir ordens a ter que carregar sozinho o peso da responsabilidade por potenciais escolhas autônomas, ainda que a liberdade possa se manifestar justamente via omissão.

A atriz e cineasta francesa Fanny Ardant, em recente visita ao Brasil, espalhou as sementes da apologia da desordem, chamando atenção para os perigos trazidos por uma vida equilibrada em contraposição aos riscos da liberdade. Relatou emocionada a história de mulheres que durante o movimento feminista foram perseguidas por preferirem ficar em casa cuidando do marido e dos filhos a sair para trabalhar fora. Mas quem vê hoje o fruto de famílias desestruturadas pelas jornadas duplas e triplas das matriarcas modernas se questiona sobre o preço pago pela falta da liberdade de não ter que seguir correntes de comportamento.

Existe uma cobrança pelo pouco apego às conveniências e a tudo o que o mundo em que vivemos considera ideal. Poucos compreendem o esforço para equilibrar autonomia e livre-arbítrio diante dos padrões impostos pelo condicionamento do inconsciente coletivo.

Recentemente, precisei testar não só minha liberdade como minha convicção em mantê-la diante dos olhos alheios. Tive nas mãos oportunidades de emprego no setor público e privado que não me agradavam e que nem de longe compensariam a falta de grana que minhas horas livres me trazem. Declinei de todos. “Verdadeira loucura!”, disseram uns. “Nos dias de hoje...” “Aos trinta e cinco anos...” “O mercado de trabalho...”, refletiram outros. Especialmente, os que me consideravam uma felizarda pela aprovação em um concurso público que se mostrou mais tarde uma tremenda trapaça.

Nunca me senti tão responsável. Posso dizer que cheguei a um ponto da vida em que sei exatamente o valor do meu sacrifício. Nunca me senti tão coerente. Passaram os anos e continuo acreditando que o ritmo da maioria é que é insano, não o meu. O luxo essencial para alguns não vale mais o meu suor.

Ter um carro, por exemplo, seria primordial, se tudo o que precisasse não fosse apenas chegar em casa, ligar o som, acender um incenso e submergir na água de cheiro fresca da minha banheira no final de um dia de calor.

Viajar ao exterior é bom demais, mas, na falta disso, tenho tido a oportunidade de conhecer lugares vizinhos que estavam debaixo do meu nariz e me presenteiam com a cultura do meu povo, que agora trago registrada nas lentes de minha câmera e nos arquivos da minha memória. Para quem gosta de estrada, como eu, o que vale é a descoberta, não interessa o quão distante ela esteja de casa. A felicidade precisa ser exercitada com o que se tem à mão.

De que importa o conforto de um escritório e um salário maior, se teria que atravessar uma via crúcis para chegar nele, desgastando minha saúde e me privando de ver os alunos se desenvolverem e curtirem aquilo que tenho para lhes dizer? Não me parece possível ser feliz copiando uma história que não é a minha.

Assumo que meu único compromisso é com meu bem estar e, na medida do possível, daqueles que amo. Sei que corro riscos a partir das escolhas que faço em prol da liberdade. Risco de o salário não chegar até o final do mês, risco de passar por alguma situação violenta dentro da favela onde trabalho à noite, de nunca aparecer uma outra oportunidade de emprego pela qual me apaixone, de morrer só, por não ter casado nem ter tido filhos, e tantos outros. Mas, convenhamos, quem mais nesse planeta não corre praticamente os mesmos riscos que eu?