terça-feira, 1 de abril de 2014

Longe das ruas



Na adolescência, ela devorava obras sobre a Coluna Prestes, a Cadeia da Legalidade e as manifestações de estudantes, intelectuais e artistas no final da década de 1960 por toda a América Latina, especialmente no Brasil. A inquietação despertada por Zuenir Ventura, em “1968, o ano que não terminou”, a fez procurar, entre parentes e vizinhos, testemunhas daquela época. Sem sucesso.

No ambiente doméstico do conjunto habitacional na periferia da cidade, o povão não tinha muito com o que contribuir. Oprimido pela necessidade de prover e ganhar o pão de cada dia, suas angústias, previstas por Marx e Maslow, eram outras. Não havia tempo nem disposição para a luta nas ruas.

Os relatos que conseguia dos contemporâneos do golpe se referiam aos festivais da canção, à Jovem Guarda, à Bossa Nova, aos costumes da época, à moda... Enfim, nada sobre as manifestações. Mesmo no colégio, conhecido pela postura ativa em movimentos sindicais, poucos eram os professores que tinham idade para ter vivido e participado ativamente daqueles acontecimentos. Ao que parecia, uma grande parcela da população passara ao largo das manifestações. E as notícias que chegavam pela mídia, ainda comprometida, eram pouquíssimo confiáveis.

Os poucos professores daquele colégio que tinham algo a dizer notavam nela um brilho diferente no olhar ao narrarem suas histórias. E enriqueciam com detalhes pessoais os já inflamados acontecimentos, como o enterro do estudante Edson Luís e a Passeata dos Cem Mil. 

Os filhos daquela geração, agora com teto próprio e tentando subir um pouco os degraus da pirâmide social, buscavam apenas um nível maior de instrução e um pouco mais de conforto material. Com raras exceções, poucos ainda se empolgavam com discursos políticos, narrativas históricas e ideologia de esquerda. Ao contrário, assim como os pais, preferiam a luta pelo status aos embates políticos.

Mas ela, na contramão, assistira à troca do poeta maranhense pelo Caçador de Marajás, escândalos de corrupção, à desmoralização elitista do projeto de educação integral, às privatizações e aos desvios de impostos, sem entender como o povo não reagia. Pareciam espectadores entorpecidos pelo medo da volta de um fantasma que durara 20 anos.

O tempo passou. Quase 50 anos depois do golpe de 64, estudantes voltam às ruas no Brasil. Em um movimento legitimado pela péssima reação da mídia, pega de surpresa. Uma revolta desenfreada contra tudo: contra governantes, contra a Copa do Mundo no país do futebol e os desmandos da Fifa, contra o aumento nas passagens de ônibus e o fiasco dos transportes coletivos, contra a falência da educação, contra a militarização da polícia, contra o fracasso da saúde pública e o mau emprego dos impostos.

Mas, mesmo hoje, ela percebe que poderia ser melhor, poderia ser maior. O povo tem mais acesso à informação, ainda que as fontes continuem comprometidas e manipuladoras. As pessoas comuns conhecem e concordam com os motivos das manifestações, ainda que se assustem com seu impacto. Mas, diferente do que se vê nos países vizinhos, as manifestações ainda não são populares, no sentido de contar com a presença maciça de diferentes parcelas da população.

E, mesmo contando com as redes sociais, repletas de mulheres independentes e graduadas e homens sensíveis e intelectualizados, nota-se que o envolvimento e a consciência política continuam passando ao largo dos milhares que se manifestam. Enquanto alguns expressam aos gritos suas causas no asfalto, muitos outros ainda se preocupam com o abadá para o próximo carnaval, as tendências da moda e o esmalte da estação, os pratos mais bem decorados ou a marca da cerveja mais popular do mercado.
 
E ela, equilibrando os problemas na vida pessoal e as causas sociais que a levavam para as ruas, caminhava junto à multidão e, no fundo, pensava que em 50 anos quase nada havia mudado e menos ainda evoluído. Será que vale a pena?