domingo, 3 de agosto de 2014

Falando com estranhos

Clique aqui e ouça a trilha sonora deste texto: "Heart of Gold", Neil Young


Às vezes, fecho os olhos e imagino o desenhar de um caminho para a vida. Então, se sinto que gosto do que vi, abro os olhos e decido que é hora de deixar de deixar a vida me levar. Arregaço as mangas e tomo as rédeas, mexo os pauzinhos, as canetinhas, os lápis de cor para executar o tal desenho.
Só que a vida logo me dá um sacode pra me lembrar que entre as diversas coisas que não sei fazer, desenhar é uma delas. As linhas saem tortas, as cores não combinam, escolho o tema errado. Talvez, seja a miopia...
Desastre cometido, fica o gosto amargo da conta do material desperdiçado para pagar e o resultado do desenho horroroso para conviver. A realidade é dura. Mas nas idas e vindas entre a capital e o interior, descobri uma maneira de fugir dessa realidade.
Sabia que meu ímã de velhinhas conversadeiras em ônibus de viagem me seria útil em algum momento. Elas contam muitas histórias que me distraem. Fico imaginando as cenas com os diálogos, a aparência das personagens e isso vai desfocando o desenho feio que deixei em casa.
E quando elas se cansam de falar e me fazem perguntas, convites para retribuir a gentileza e distraí-las com alguma novidade, volto a lembrar do monstro criado e abandonado porta adentro fechada atrás de mim.
Então, gentilmente, retribuo reinventando a história toda. Deixando-a exatamente com as cores que queria, o alinhamento perfeito e os traços sonhados. A cada nova viagem, uma nova versão do mesmo desenho, cada vez melhor. Elas gostam do que ouvem. E, de repente, me dou conta de que a gentileza delas pode também ser versões de desenhos mal feitos, inacabados ou brutalmente interrompidos. Todo mundo tem uma história triste pra mudar, nem que seja só no faz de conta.
Trilha sonora sugerida: "Heart of Gold", Neil Young
Desço do ônibus e no caminho até a porta de casa vou assobiando uma música que me lembra  que estou ficando velha para procurar um coração de ouro. Abro a porta e dou de cara com o tal desenho mal feito. Ele tomou conta de toda a casa. Entro nela. Faço parte dele de novo. A realidade é dura.