domingo, 7 de setembro de 2014

Computadores fazem arte. E Artistas?

Há 20 anos, concluindo a faculdade, me enturmei com um pessoal que tocava rock. Era uma galera intrépida que topava qualquer parada, se metia nos maiores (e menores) buracos pelo prazer de tocar e se apresentar e dividir e se divertir. Às vezes, pagavam pra tocar, mas não recusavam o convite.

Hoje muitos andam por aí disfarçados de pais de família, funcionários públicos, moram lá longe e chacoalham no trem da Central... Alguns ainda tocam em projetos aqui e ali, fazem trilhas sonoras, lançam livros e músicas novas pela internet. Não enriqueceram, mas vivem de música. Poucos conseguiram destaque na mídia e continuam aparecendo até hoje.

Mas uma coisa é certa. Quem curtia rock nos anos 90 e andava pela Lapa, pelo Garage e pelos circuitos universitários, nunca vai esquecer a era dos zines, dos pequenos festivais, das coletâneas, como Paredão, dos shows no posto 9, no Parque Garota de Ipanema e no Parque dos Patins.

As bandas que formaram essa cena podem até não existir mais, entretanto ainda ecoam na memória os acordes e os versos de histórias que marcaram aquela geração: um menino que apanhava de vara de araçá e cabo de vassoura; a minissaia e os óculos de sol; a Julieta que não liberava pros garotos; o rapaz que esperava debaixo das palhas do coqueiro; o refrão que parava no 4 em diversos idiomas; a declaração de amor rodriguiana pela sogra; e por aí vai.

Em uma roda de roqueiros quarentões, as risadas e os olhares de cumplicidade que surgem ao soar dessas palavras mágicas são partilhados apenas por quem viveu intensamente aquela época em cima do palco ou na audiência.

Mais do que uma infinidade de histórias engraçadas, juvenis e despretensiosas que fizeram muita gente rir e até sonhar com uma carreira artística. Uma possibilidade nova de expressão sem compromisso. Arte pela arte.

Dez anos mais tarde, já no mercado de trabalho, me deparei com uma nova geração de artistas. No lugar de guitarras, baterias, baixos e microfones, usavam como instrumentos os sprays, as tintas e os pincéis para se expressarem. A Street Art era a novidade do momento. No começo, até percebia neles um engajamento, uma certa preocupação ética e social com o que exprimiam. Mas, com o passar do tempo, fui identificando nichos mercadológicos nos quais vários deles se encaixavam.

A experiência e o amadurecimento me permitiram observar a maneira como associavam seus traços, inegavelmente talentosos, a marcas conhecidas, seus 15 minutos de fama em programas de tv de gosto duvidoso ou em canais de notícia de perfil questionável, fotos ao lado de “celebridades”. E pior, o deslumbramento disfarçado de orgulho ou de conquista brilhando nos olhos. Contudo, restava a esperança de que a mesma experiência e amadurecimento estivessem me transformando em uma balzaca ranzinza.

Mais dez anos se passaram, vim trabalhar no interior em uma escola regida por gente muito especial que, ao se deparar com situações de agressividade e vandalismo (leia-se depredação de patrimônio público), associados ao abuso de drogas, entre um grupo crescente de alunos, inovou. Escolheu o trabalho com a arte como caminho para abrir um canal de comunicação e resgate desses alunos.

Empolgada com essa nova realidade, inocentemente, saquei dos meus contatos e tentei trazer alguns elementos daquela que já tinha sido a nova geração de artistas para contar suas histórias, mostrar seus trabalhos e propor uma nova e criativa forma de expressão para a molecada enfezada do interior. A escola (vale lembrar) pública se propôs a cobrir as passagens do artista e o material necessário para o workshop. Eu me propus a hospedar o artista que quisesse pernoitar, com direito a acompanhante, e refeições.

Contactados, em nome dos velhos tempos, dois se dispuseram a participar. Alegria na escola. Professoras de educação artística mudando sua programação para incluir o graffiti em seus programas bimestrais. No entanto, vários meses depois, os tais artistas jamais chegaram a marcar uma data nem sequer apareceram.

De vez em quando, ligo a tv ou o computador e vejo algum representante dessa geração de “street artists” se queixando da dificuldade de acesso aos meios tradicionais de exibição artística e a galerias (mas não é arte ‘de rua’?). Vejo-os reclamarem de eventos nacionais que dão mais valor às obras estrangeiras roubando espaço dos “nossos” brasucas que, diga-se de passagem, também já foram ilustrar muros em países distantes.

Penso que se artistas estrangeiros, como Banksy, participam de mostras enviando suas obras para o Brasil, ou, como os europeus e americanos , que vêm pessoalmente para participar da mostra “Street Art – Um panorama urbano”*, esses artistas estão buscando um público para comunicar sua arte. Receberam cachê? Tiveram apenas as passagens pagas? Não se sabe.

O fato é que saíram de seus países e vieram fazer aqui o que vários brasileiros ocupadíssimos não conseguem fazer em uma cidade vizinha, em um colégio público cheio de criatividade, interesse e energia a serem explorados. Ou, no mínimo, um novo público “consumidor” de suas peças agora associadas a marcas da moda. Teria sido bem mais fácil trazer alguém legal para conversar com a garotada da escola se o Rock ainda fosse a forma de expressão artística da moda.

Afinal, disposição e boa vontade para tocar não faltavam para minha geração. Faltava, talvez, a visão mercadológica que esses artistas neoliberais possuem. Mas quer saber? Como dizia Oscar Wilde**, no momento em que o artista troca a comunicação de sua expressão para atender a demanda do mercado, passa a ser um artesão ou um negociante. E estávamos falando de quê, mesmo? Ah, sim, Arte.
“O sucesso te distancia do mundo. Você começa a circular em áreas exclusivas, ver um grupo restrito de pessoas. Comecei a ficar com medo disso. O topo é muito solitário. Tive que parar de querer ser o melhor e me imaginar repartindo a ideia de ‘ser o melhor’’’. (Vik Muniz para a revista Trip. Radicado em Nova York e com obras exibidas nos principais museus do mundo, o artista plástico de 49 anos mantém seu estúdio em Parada de Lucas, bairro pobre da zona norte carioca e tem intermediado o apoio de empresas a entidades de cunho social.)
O graffiti e a escola ao redor do mundo:
*A citada exposição de street art internacional e brasileira ficará em cartaz até outubro no Rio. Veja mais sobre ela em http://www.hypeness.com.br/2014/08/exposicao-no-rj-traz-trabalhos-de-banksy-e-outros-icones-da-street-art/

**Oscar Wilde em “A alma do homem sob o socialismo” (L&PM, p. 45, 2003).