sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Egotrip



     Na minha terra, qualquer troca de ideias, mesmo numa mesa de bar, que comece com “bota uma coisa na tua cabeça” não é uma troca de ideias. É uma tentativa de imposição de uma ideia sobre a outra. Meu primeiro impulso é tirar imediatamente o time de campo. Mas, por algum respeito à civilidade, faço cara de paisagem e finjo que participo daquilo que deveria ser um diálogo e, invariavelmente, descambará para um monólogo.
     Meus pais tiveram cinco filhos. Organizavam muito bem as guerras de ego e competitividade entre nós. O discurso era simples, curto e grosso, para que não houvesse ruído na comunicação ou falhas na interpretação: “Não se compare. Ele é ele. Você é você.” Isso servia para todas, eu disse TODAS, as ocasiões. Porque eles não faziam cobranças a um filho com base na experiência do outro. Não eram psicólogos, catedráticos, acadêmicos. Mas compreendiam muito bem o sentido da palavra pluralidade. Afinal, tinham um laboratório fervilhante em casa.
     Trouxe esse discurso dos velhos pra minha vida. Observo as experiências dos meus irmãos, dos amigos, dos colegas e até de gente que nem conheço. Ouço tudo. Dou uma peneirada. O que me serve, aproveito. O que não, descarto. Por incrível que pareça, consigo fazer isso sem pirar com comparações. Quando começo a babar demais na trip de outra pessoa e querer imitá-la, paro e penso, “peraí, essa vida é a dela, não a minha”. E volto pro eixo.
     Essa percepção começou quando entendi que havia uma diferença entre quem eu sou e quem eu quero parecer que sou. E quando essa diferença aumenta muito, ou seja, quando quero parecer algo que não sou, me sinto ameaçada pela concorrência. A concorrência no trabalho, a concorrência no esporte, nas redes sociais, nos relacionamentos e a concorrência de ideias.
     A competitividade exagerada vai além do respeito pelo outro. Esbarra no respeito por si mesmo. Vai além do hábito de subestimar o outro. Tenta proteger a imagem criada para si mesmo, supostamente ameaçada por uma ideia diferente. Gera uma agressividade proporcional à violência que a pessoa se auto inflige quando tenta parecer o que não é. Faz as pessoas enxergarem indiretas onde não há. Faz as pessoas invadirem as páginas e publicações alheias para provocar e discutir por se sentirem atingidas por algo que sequer lhe diz respeito. Enfim, dá margens aos maiores destemperos de que já tivemos notícias.
     E há os egos que não se satisfazem com pouco. Fazem questão de dar a última palavra, especialmente nas conversas alheias. Muito antes da internet, Tom Jobim e João Gilberto já descreviam muito bem esses ególatras na letra de “Discussão”: “se você pretende sustentar opinião e discutir por discutir só para ganhar a discussão...”. E sentenciam: “já percebi a confusão, você quer ver prevalecer, a opinião sobre a razão. Não pode ser, não pode ser. Pra que trocar o sim por não, se o resultado é solidão? Em vez de amor, uma saudade vai dizer quem tem razão”.
     No mundo presencial, tento fazer ouvidos moucos para ideias, digamos, “esquisitas” que chegam à minha percepção. Afinal, dita a lei da boa convivência, é preciso aprender a lidar com todos os tipos de pessoas, ou, no mínimo, tolerá-las. Mas o mundo virtual é o meu clube privé. Fecho a porta e passo o rodo sempre que possível em gente que insiste em me importunar com sandices, preconceitos e extremismos. A mim, já bastam os absurdos a que somos submetidos nas ruas e nos meios de comunicação de massa.
     Exagero, meu? Destempero? Tirania? Pode ser. Mas eu preciso proteger meu ego também. E fecho com Ferreira Gullar quando diz: “prefiro ser feliz a ter razão”. E ter razão, além de insuflar o ego, dá muito trabalho...