quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Sobrevoando o bairro

Goiabada-cascão em caixa
é coisa fina, sinhá
Que ninguém mais acha
Rango de fogão de lenha
Na festa da Penha comido com a mão
Já não tem na praça, mas como era bom...
(“Goiabada Cascão”, de Wilson Moreira e Nei Lopes)



Take 1
Minhas lembranças mais antigas das ruas da Penha me levam de volta ao colo da minha mãe. Descíamos do ônibus, cujo estofado azul tracejado de branco era o meu favorito. Acho que voltávamos do médico. Acho que era no mesmo bairro, porque a viagem era curta, mas suficiente para adormecer e fazê-la subir a ladeira e as escadas do prédio comigo, um peso vivo, em seus braços. Naquele tempo, ela caminhava sem dificuldades. Os tentáculos da artrite ainda não haviam corroído as articulações de seus joelhos e passeávamos muito. Naquele tempo, minha rua tinha bloco de carnaval, o “Vai-e-vem”. Ainda lembro da noite em que desci pela primeira vez para ver o bloco passar. Parecia que meu pequenino corpo se espatifaria com a vibração dos bumbos e tambores que me deixava apavorada e me impedia de sambar como as outras crianças mais experientes.

Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
No avesso da montanha, é labirinto
É contra-senha, é cara a tapa
Fala, Penha...
(“Subúrbio”, Chico Buarque)



Take 2:
Sempre de mãos dadas com minhas irmãs, descia para tomar sol, no quintal da Tia Mira, a simpática “tia” que abasteceu e refrescou, durante várias décadas e gerações, os moleques da rua e dos prédios com seus famosos sacolés de ki-suco, chocolate e amendoim.
Ou então, íamos todos, os guris e as gurias, ao Parque Ary Barroso brincar para que minha mãe pudesse arrumar a casa e fazer a comida em paz. O parque era uma grande área verde, com córrego e tudo, cheio de insetos diferentes, camaleões, peixinhos, com os brinquedos tradicionais, nos quais passava horas e horas, e grama verdinha pela qual descia rolando várias vezes e chegava lá embaixo toda mordida de formiga.
Nesse parque, fiz amigos, como a Karla que me abraçou forte ao me reconhecer no primeiro dia de aula no jardim de infância, depois de termos passado uma única manhã de domingo brincando. Amigos que me aturam até hoje.
O parque agora faz divisa com uma favela, de onde volta e meia corpos são jogados. Apenas aos finais de semana, homens ocupam suas quadras. As poucas crianças se limitam às áreas mais próximas da rua, onde pela manhã idosos fazem tai chi chuan. O córrego secou. E, nos finais de tarde, meninos e rapazes desempregados malham seus músculos e queimam suas ervas.
Na minha infância, as ruas da Penha eram coloridas. Suas fachadas, as mesmas de hoje, não eram tão sujas. E me pergunto quando os comerciantes e moradores começaram a perder o zelo pelo nosso bairro.


Mangueira, Ilê Aiê e viva o baticum
Quando a Padre Miguel encontra com Olodum
Caymmi com Noel, no Tom maior Jobim
A Penha, a Candelária, o Senhor do Bonfim...
(“Lá e Cá”, Lenine e Sérgio Natureza)



Take 3:
Um dos motivos de orgulho dos moradores era a fartura de condução vinda de todos os cantos da cidade. Todos podiam vir para as festas de outubro, freqüentar nosso parque de diversões, o Shangai. As festas da Penha, a padroeira, eram famosas. A escadaria da igreja serviu de penitência e prova de fé para muitos que esfolaram seus joelhos nela. Esforço recompensado pela bela imagem da igreja erguida em cima da pedra, vista de vários pontos da cidade, da Ponte Rio-Niterói, do Alto da Boa Vista e do avião de quem chega no Aeroporto Internacional. Mas hoje ela está cercada de favelas, onde moram trabalhadores e perigosos bandidos que já chegaram a ameaçar a realização da tradicional festa do bairro por vários anos e cuja reputação assusta os que gostariam de visitar a bela igrejinha, o mais belo ponto de luz na noite do subúrbio carioca.


Hoje é domingo
E, eu preciso ir à festa
Não brincarei
Quero fazer uma oração
Pedir à santa padroeira proteção
Entre os amigos
Encontrarei algum que tenha
Hoje é domingo
E, eu preciso ir à Penha
(“Festa da Penha”, Cartola e Asobert)



Take 4:
Hoje, o bairro deixou de ser famoso pela igreja e sua festa. Aparece apenas nas páginas policiais. Os fogos da Festa da Penha foram substituídos pelo fogo que queimou pessoas no ônibus 350. A fé dos fiéis que subiam a escada de joelhos foi trocada pela caça de assassinos como os do jornalista da Globo. O bumbo e o tambor deram passagem às granadas e rajadas. A condução que trazia pessoas de todas as partes, agora leva embora os que não suportam mais a violência, as constantes guerras entre as diversas comunidades carentes, e tiveram seus imóveis desvalorizados.
Hoje até a velha parceria entre os comerciantes locais e os moradores não existe mais. Os antigos moradores vêem a camaradagem e a boa vizinhança darem lugar ao interesse por um ponto de alto movimento e passagem de veículos que gera renda e corrupção por parte daqueles que deveriam defender os cidadãos e acabam se vendendo e jogando contra eles.


Demonstrando a minha fé
Vou subir a Penha a pé
Pra fazer minha oração
Vou pedir à padroeira
Numa prece verdadeira
Que proteja o meu baião
Penha, Penha
Eu vim aqui me ajoelhar
Venha, venha
Trazer paz para o meu lar
(“Baião da Penha”, Luiz Gonzaga)


Take 5:
Ainda bem que sempre há aqueles que não desistem. Os que se recusam a deixar sua raiz para a erva daninha. Os que preferem ficar e tentar fazer do seu espaço a continuação das boas memórias de uma vida inteira.
Vai chegar o momento em que as desigualdades vão parar de gerar tanta dor e, desse momento de caos em que nos encontramos na cidade toda, surgirá uma luz que cegará aqueles que só querem destruir.
A crise é um mal necessário para que novas idéias e padrões de comportamento nasçam, ainda que baseados nas velhas memórias de um passado distante e feliz. Precisamos acreditar que o bem vai vencer. Que cada um de nós é responsável pelo que nos cerca e, por isso, depende de nós também dar mais atenção ao próximo para que novos monstros parem de nascer. Se olharmos o ambiente onde vivemos como uma extensão de quem somos, começaremos por nossa calçada, nossa rua, nossa quadra, ultrapassaremos as fronteiras do bairro e quem sabe um dia, seremos uma grande nação. Um “país sério”, afinal. Há muito tempo, alguém disse – com razão – que o homem É um produto do meio. Mas há quem afirme que o meio também é um produto do homem.