quarta-feira, 27 de julho de 2011

Politicamente Incorretos

Há coisa de um mês ou mais, um pequeno furdunço se instalou na mídia brasileira. Os comentários feitos pelo músico Ed Motta em sua página no Facebook deixaram alguns de cabelo em pé. Mas será que o músico, acusado de ser preconceituoso e machista, estava totalmente errado? Será que por ser uma celebridade ele não tem direito de ser politicamente incorreto da mesma maneira que qualquer outro mortal? E será que os tais comentários talvez não sejam apenas uma questão de observação e gosto? E gosto, sabemos, não se discute.
O músico alega ter feito apenas algumas brincadeiras com amigos na rede e pediu desculpas aos ofendidos. O fato é que suas declarações a respeito da necessidade de talento para mulheres feias e isenção desse atributo para as bonitas incomodou tanto quanto sua preferência pelo povo do sul em oposição a cariocas e nordestinos.
Tudo bem! Admitamos. Os comentários seriam totalmente dispensáveis na mídia aberta. Quando uma pesssoa pública, seja artista, cientista, político, ou seja lá o que for, entra em sua casa via tv, rádio ou jornal e dá declarações como essas, realmente, falta-lhe uma dose considerável de “semancol”. Porém, o músico em questão não foi à mídia fazer tais comentários, muito pelo contrário. Ele estava na página DELE, conversando com amigos DELE, e não invadiu a casa de ninguém. Alguém leu e resolveu jogar no ventilador.
O facebook, site de relacionamento onde se deu o bafafá, é um espaço público? Mais ou menos... Existe a possibilidade de você adicionar ou não as pessoas que farão parte da sua rede, mas não é totalmente controlável o acesso para quem vai ler suas conversas. Sendo assim, qualquer pessoa tem o direito de escrever o que bem entender em sua página e quem não se agradar que vá fuçar a vida de outro. Simples assim.
Por outro lado, vamos tentar olhar a situação sob a ótica do músico. Quantas vezes você se deparou com uma péssima atriz, ou cantora, porém linda de morrer, e pensou: “Ah, assim até eu...”? Ou os rapazes, quantas vezes torceram o nariz para o jogador, o cantor, ou o ator com pinta de galã, porém sem um pingo de talento, e não pensaram o mesmo? E nem sempre isso é despeito. Muitas vezes, é apenas uma constatação!
Com relação à questão geográfica. Outro dia, liguei o rádio para ouvir o programa “Rock Bola”, na FM do Rio. E ouvi comentários dos divertidos apresentadores sobre a alegria que sentem quando as câmeras de tv transmitem imagens das arquibancadas nos estádios do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Foram além, relataram o aborrecimento quando as câmeras focalizam as arquibancadas nordestinas. Obviamente, eles se referiam à presença feminina nos jogos de futebol. Ok, trata-se de um programa de humor, mas será que não existe uma preferência politicamente incorreta por trás desse humor? No entanto, o programa é líder de audiência e já alcança outras mídias, como jornal, teatro e tv.Ultimamente, eu mesma tenho pensado muito em deixar o Rio de Janeiro. O trânsito por diversos ambientes e as observações que faço em cada um deles têm me convencido que o Rio não é mais dos cariocas. E que os cariocas estão cada vez mais distantes da imagem simpática que é feita deles.
Aí vão alguns exemplos! Avenida Brasil, passarela do caracol, na entrada da Ilha do Governador. Uma mulher de aparência humilde andava sobre a passarela, falando alto ao telefone e gesticulando com a mão livre, tendo entre os dedos um cigarro aceso. Ao ultrapassá-la, ela solta o braço e a ponta do cigarro atinge minha perna, um pouco acima do joelho, furando a meia-calça preta que se rasgou inteira em frações de segundos.

A primeira reação da fumante foi rir. Ao ver minha feição pouco satisfeita, se desculpou. Ao ouvir minha voz proferir que até para fumar é preciso ter classe, ela calou e desceu apressada a rampa da passarela.
Avenida Rio Branco esquina com Rua Sete de Setembro, uma hora da tarde de uma segunda-feira qualquer. Uma mulher muito bem vestida caminha velozmente em um salto altíssimo pelas traiçoeiras pedras portuguesas. Para manter o equilíbrio, solta os braços com velocidade, ocupando uma considerável área em volta de si mesma, apesar do denso fluxo de pedestres naquela região e naquele horário. O inevitável acontece: ao passar por um homem parado em frente a uma banca de jornal, ela – que também portava um cigarro aceso – atinge a mão do homem, queimando-o. Não fiquei para ver o resultado.Em um ônibus de uma linha qualquer em um horário qualquer, homens em idade produtiva ocupam o assento destinado a idosos, grávidas e deficientes e fingem dormir quando um desses destinatários entra no veículo.Outros passageiros sentados, homens e mulheres, obstruem com seus pés o corredor do ônibus atrapalhando os infelizes que tentam caminhar e se equilibrar contra a inércia (uma lei da física que, por sinal, deveria ter sido estudada antes de colocarem o desembarque de passageiros no fundo dos ônibus).

Há também aqueles que ao passarem pelo corredor ou ao se levantarem de seus assentos, o fazem de forma tão atabalhoada que pisam, não nos pés, mas NAS PERNAS dos que estão próximos. Às vezes, pedem desculpa, outras, ignoram. Sem falar nas madames que, ao circularem pelo corredor, batem com suas enormes bolsas nos rostos dos felizardos que conseguem um lugar para sentar. Nem pense em reclamar, pois o errado é você que deveria ter pego um táxi!
Num dia desses, depois de comprar meu ingresso para o Rock in Rio, no Engenhão, me submeti a uma aventura nos trens da Supervia. Como me dirigia ao centro da cidade, optei pelo trem para fugir do trânsito na hora do rush.
Pouco antes de chegar à estação da Central do Brasil, onde deveria descer, a composição ficou parada e perguntei a um passageiro próximo qual era a estação seguinte. O gentil passageiro me deu a informação que precisava e, percebendo que não estava habituada a utilizar aquele transporte, me aconselhou a permanecer sentada quando chegasse à Central e só me levantar para sair quando todos os passageiros estivessem acomodados. Achei engraçado, mas agradeci e aguardei.
Quando chegamos à tal estação e as portas do vagão se abriram, o povo que esperava na plataforma, faminto de assento, invadiu o trem aos berros, aos solavancos, correndo ensandecido. Fui deslocada do lugar que estava coisa de meio metro, sem sequer me levantar. Os que sentavam gargalhavam como que possuídos por alguma entidade zombeteira. Um espetáculo sinistro que, peço a Deus, não precisar presenciar nunca mais. Consegui deixar o vagão. O passageiro que havia me dado informação reapareceu para perguntar se estava me sentindo mal. Neguei e, mais uma vez, agradeci. Fico imaginando como estava minha expressão naquele momento...
Diante desses pequenos e corriqueiros exemplos, ainda existe alguém que, vivendo no Rio de Janeiro – não exclusivamente no “Rio-Área Nobre”, mas no “Rio Povão”, o Rio que não aparece seriamente retratado nas novelas de tv –, tem a coragem de discordar de Ed Motta quando ele diz que mais para o sul do Brasil as pessoas são mais bonitas e se comportam melhor?
D U V I D O! ! !
Então, vamos deixar a máscara da hipocrisia de lado porque no fundo, por mais que doa, todos sabemos que existe alguma razão nas palavras do músico. O Rio de Janeiro não precisa de um banho de loja. O POVO do Rio de Janeiro é que precisa de mais elegância, de mais etiqueta, ou como diz minha mãe, “de um pingo de modos”.

Fonte das imagens por ordem de aparecimento: "Des-bocado" (wwwvireta.blogia.com); "Boas maneiras" (www.smartkids.com.br/especiais/boas-maneiras.html); "100% mal educado" (enguiafresca.blogspot.com); "Desculpe" (educaja.com.br); "Lixo" (tialety.blogspot.com)

quinta-feira, 30 de junho de 2011

"Lie to me" ou "Me engana que eu gosto"

Todos os dias, noticiários mostram os movimentos populares na Europa. Reivindicações de povos que agora tentam manter por conta própria o status mantido durante um longo e tenebroso inverno por países pobres da África, Ásia e Américas. Mas, perpetuando o padrão cultural de todo país que se recusa a deixar de ser colonizado, nossas tvs devem achar a grama dos outros mais verde, ou os grevistas europeus mais interessantes do que os nacionais. Afinal, bem aqui debaixo do nariz da imprensa brasileira, professores da rede estadual do Rio de Janeiro e de vários outros estados brasileiros, como Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Norte, estão em greve desde o começo do mês. Mas quem não tem um professor na lista de amigos, conhecidos ou parentes dificilmente sabe disso.
Fingindo que acreditamos que a única razão para o movimento dos professores não ganhar espaço nos noticiários locais se deva apenas a uma preguiça editorial que prefere chupar as agências de notícias internacionais, vamos passar para uma outra questão: O movimento dessa categoria não aparece na mídia por não contar com o apoio da população? Ou o movimento da categoria não conta com o apoio da população por não aparecer na mídia? Provavelmente, o motivo da falta de entrosamento entre professores e povão está muito além da exposição na mídia.
Entre 2009 e 2010, testes realizados com os alunos da rede estadual de educação em todo o Brasil colocaram o estado do Rio em penúltimo lugar, à frente apenas do Piauí. Durante a campanha da última eleição para governador, esse foi o principal gancho da oposição para atacar o governo Sérgio Cabral.
Mas, a seu favor, o governador contava com a instalação de UPPs em algumas favelas da cidade do Rio, aliada a uma cobertura cinematográfica da imprensa e uma estratégia de não-enfrentamento diante das câmeras – nem sempre apoiada pela população que, muitas vezes, torcia para ver o sangue jorrando na tv. Cabral levou 70% dos votos no primeiro turno. Uma eleição para não deixar dúvidas sobre as preferências populares.
Mas para que as Unidades de Polícia Pacificadora existissem, foram gastas somas consideráveis do orçamento público para a criação de um grupo paramilitar que, com a desculpa de evitar confrontos, permite a fuga de traficantes, mas invade um quartel de bombeiros lotado de trabalhadores e civis.
Enquanto traficantes fogem de uma favela (ou de uma cidade) para outra, a população apoia estratégias que armam uma tropa de elite para gerar uma falsa sensação de segurança. Sem perceber que enquanto a educação não for tratada como prioridade, seremos sempre reféns de políticas mágicas de segurança que transferem conflitos do Leme, de Botafogo, de Ipanema para o Centro, do Centro para o Alemão, do Alemão para a Maré, para a Vila Kennedy, para a Baixada, Niterói, Região Serrana, Região dos Lagos...
Já fomos vítimas de tais políticas mágicas no governo Moreira Franco que prometia acabar com a violência em 6 meses. Coincidência ou não, Sergio Cabral fez parte desse governo, como diretor da TurisRio. O preço que pagamos foi a falência do estado do Rio de Janeiro e uma propagação da violência em níveis nunca vistos antes. Sem contar que, para eleger Moreira Franco, abrimos mão de, pela primeira vez, eleger um educador para o governo do estado.
Fingindo que acreditamos que só a população negligencia a educação, observemos a escolha do novo secretário estadual. O gênio incumbido de recuperar a moral da educação no estado do Rio: um economista. Ele chegou com muitos números e inúmeras ideias que soaram como velhas conhecidas. Resolveu premiar com 14o salário os professores que conseguissem elevar as notas de português e matemática de suas escolas, sem falar em gratificação e kit-cultura. Mas o salário continua baixíssimo.
Com treze anos de estado e uma pós-graduação, ganho menos do que um professor iniciante do município do Rio que, por sua vez, ganha menos do que um professor iniciante de Angra dos Reis, só para compararmos com diferentes regiões do mesmo estado. Mas será que essas bonificações são suficientes para elevar a posição do nosso estado no Ideb?
Creditar à baixa remuneração do professor a responsabilidade pelos maus resultados no exame nacional é um caminho perigoso. Em primeiro lugar, essa desculpa só funciona se for usada para pagar ao professor um salário que o permita reduzir o número de escolas nas quais leciona e se dedicar a um número menor de turmas.
Obviamente, 14o salário, gratificações e premiações esporádicas não são suficientes para que o professor abra mão de um ou dois turnos de trabalho, o que significa dizer que a qualidade do trabalho em sala continuará comprometida.
Além disso, governos anteriores já tentaram a mesma estratégia, conseguindo no máximo um número maior de aprovações, algumas vezes, forjadas por diretores que alteravam as notas dos alunos à revelia do trabalho dos professores. Outras vezes, resultado da vista grossa do corpo docente que se deixava chantagear por políticas meritocráticas.
Tanto em um quanto em outro caso, a deturpação de notas não preocupa o governo, afinal, na grande maioria das vezes, por trás da busca por melhores notas se escondem apenas metas que precisam ser batidas a fim de conseguir uma verba maior que normalmente nem é investida, nem revertida, em melhores condições de trabalho e estudo para professores e alunos.
Para piorar a situação do professor fluminense, as gratificações cedidas pelos governos anteriores, foram retiradas por Cabral, assim que assumiu o poder, e parceladas em tantas prestações que a classe docente só voltará a vê-la, devidamente defasada, em 2015.
Contudo, o maior risco de políticas que jogam exclusivamente nas costas dos professores a elevação dos índices educacionais é desconsiderar o fato de que a rede estadual de educação, responsável principalmente pelo ensino médio e com número mais expressivo de alunos na capital, vem recebendo há várias gerações alunos oriundos da rede municipal que apenas há 3 anos aboliu a aprovação automática. Por isso, não resolverá transferir para os professores a conta gerada por sucessivas prefeituras comandadas por loucos e irresponsáveis.
Mas fingindo que acreditamos que apenas a população e o governo defecam para a educação, não poderíamos deixar de mencionar os próprios professores que, apesar de estropiados e mal pagos, agarram-se a miragens de esmolas extras dando as costas às reivindicações da própria classe e ao futuro de toda uma geração de estudantes.
Há também os que usam os salários baixos e as condições de trabalho ruins para justificar a própria incompetência e falta de interesse pelo magistério. Entretanto, muito pior do que a falta de coragem para participar de uma mobilização coletiva, é perceber professores que assistem de camarote a colegas que dão a cara para bater (e o ponto para cortar) em prol de reivindicações que trarão benefício para todos, enquanto se aproveitam de suas ausências em sala para ficarem mais tempo sem fazer nada ou irem mais cedo para a casa. Os movimentos de greve são momentos muito propícios para descobrir de que material são feitos os membros de uma classe.
Horas antes de fechar este texto, recebi matéria da Folha de São Paulo reportando as isenções fiscais concedidas pelo governo do estado a salões de beleza frequentados pela primeira dama, a motéis, termas e boates (frequentados sabe-se lá por quem!) que somam o montante de R$ 50 bilhões que deixaram de ir para os cofres públicos do estado.
Semanas atrás, alguns deputados da Assembleia Legislativa convocaram o governador para prestar esclarecimentos sobre suas relações com um ex-doleiro e o dono da empreiteira Delta que vem ganhando todas as concorrências para obras públicas no estado do Rio. Estavam todos juntos na Bahia na ocasião da queda de um helicóptero com vítimas fatais.
Eu ligo a tv ou vejo na internet manifestações para legalização da maconha, parada gay, marcha por Jesus, movimento para liberar o uso de skate na Praça XV, artistas se mobilizando pelos bombeiros... Tudo é válido. Mas quando as pessoas vão finalmente apoiar a única causa que abraça todas as outras: a EDUCAÇÃO?
Há um clamor por melhor educação de norte a sul do país e parece que ninguém quer ver ou se importar com isso. Pois quando você estiver preso em um engarrafamento no centro da cidade e a causa for uma manifestação de professores, abra o vidro do carro ou do ônibus e aplauda, buzine, apoie! Quando você estiver insatisfeito com a situação da sua cidade, do seu estado ou do seu país, pense que cada povo tem o governo que merece. Um povo sem educação é um povo condenado a ser refém de bandidos, sejam eles engravatados, uniformizados ou organizados. Pense nisso! Pense!


Matéria da folha de São Paulo sobre isenções fiscais no estado do Rio http://www1.folha.uol.com.br/poder/935193-renuncias-fiscais-de-cabral-vao-de-boate-a-cabeleireiro.shtml
Conheça mais detalhes da trajetória política e de enriquecimento ilícito do governador em http://www.tribunadaimprensa.com.br/?p=20022.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

oS livRO do MEC

Quando pensamos que já vimos tudo, surge no cenário brasileiro mais uma novidade assombrosa. No final do primeiro bimestre de 2011, chegou às escolas públicas do Rio de Janeiro, e provavelmente de todo o país, o novo livro didático adotado pelo Ministério da Educação.
Trata-se de um exemplar por série, volume único, abrangendo as diversas disciplinas estudadas pelos alunos.
A esta altura, o leitor deve pensar que o motivo do assombro foi a chegada tardia do livro às escolas, pois, para efeito de ensino de jovens e adultos (em que cada série dura um semestre) a entrega dos livros no final de abril é praticamente uma piada.
A situação piora um pouco mais se mencionarmos que o material foi entregue aos alunos e não aos professores. Muitos destes tomaram conhecimento da existência do tal livro ao entrarem em sala na primeira aula do segundo bimestre e serem surpreendidos pelos alunos perguntando em que página deveriam abri-lo para acompanhar a matéria. Porém, as surpresas não param por aí.
A autora do conteúdo referente à língua portuguesa, Heloísa Ramos, traz para a sala de aula uma nova versão do “Samba do Crioulo Doido”. Baseada na sua interpretação de estudos linguísticos, ela estabelece relações entre “classes sociais que têm mais escolarização”, ou “classe dominante”, que, enquanto usuárias da norma culta ou linguagem formal, utilizam-se da língua como um recurso político.
E, do outro lado, as “classes sociais menos escolarizadas”, usuárias da “norma popular”, ou linguagem informal, sendo, por isso, vítimas de preconceito social ou “preconceito linguístico”. Nas palavras da autora, tais classes vitimizadas são compostas pela maioria dos brasileiros. [Unidade I, Capítulo I, p. 12.]
A grande confusão começa quando a autora resolve explicar a diferença entre linguagem formal e informal e, a seguir, exemplificá-las. De acordo com o livro, a norma culta, ou discurso formal, deve ser empregada quando escrevemos um requerimento ou ao conversarmos com uma autoridade, por exemplo. Mas quando escrevemos um bilhete a um amigo ou conversamos com as pessoas de nossa família de maneira espontânea podemos ser informais. Até aqui, tudo bem!
O problema reside nos exemplos. De acordo com a página 14 do livro, é comum, na linguagem informal, as pessoas dizerem, por exemplo, Minha irmã viu ele lá. Enquanto, na norma culta, a frase seria: “Minha irmã viu-o lá”.
Na página seguinte, é dito que concordâncias de gênero e número ocorrem na norma culta, pois, na norma popular, é possível falar Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Mas, nem tudo está perdido! A generosa e solidária autora aconselha o aluno que preferir utilizar a norma popular a ficar atento porque, dependendo da situação, ele corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.
A autora acerta ao comentar que, “como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes”. Mas escorrega, quando admite a possibilidade do emprego do que ela considera linguagem informal quando for necessário, e cai, quando confunde linguagem informal com erro gramatical e linguagem formal com português rebuscado.
Os sofismas, os excessos de rebuscamento, os exageros de eloquência, os jargões profissionais, esses, sim, são práticas e estratégias de dominação política e social pela língua. Estamos a um passo de adotar um discurso inversivo, típico de um complexo de superioridade arrogante que pretende passar a mão na cabeça do pobrezinho que fala errado porque não tem capacidade de aprender o que é correto. E, pior, para mais tarde atribuir ao professor a incompentência linguística desse aluno.
Ao ler este livro, eu é que me senti vítima de um preconceito linguístico! Em que classe se encaixam as pessoas que, como eu, concordam o substantivo com o verbo, com o adjetivo e com artigo em qualquer situação, na favela ou no asfalto, com pobre ou com rico, no trabalho ou em família? Em que classe se encontram as pessoas que, como eu, dizem “eu a vi lá” ou “os livros são interessantes”?
Em que classe se encaixam os humildes que, como Cartola, estudaram até o primário e são capazes de parir obras-primas de simplicidade e correção inalcançáveis até para os maiores catedráticos? Somos todos desclassificados para o MEC?
Eu cresci numa família de gente pobre que espremia cinco pessoas em um apartamento de conjunto habitacional, onde conviviam outras famílias tão pobres quanto a nossa. A criançada toda ia à escola e aprendeu a ler e escrever fazendo cópias das lições do livro como dever de casa. Repetindo no caderno vinte vezes as palavrinhas que errava no ditado para não errar mais. Decorando a tabuada. Procurando as palavras no dicionário porque os pais usavam o “pai dos burros” como antídoto contra a preguiça. E as famílias não ganhavam um centavo a mais por isso!
Fomos crianças pobres que não ganharam uniforme escolar, nem livros e pagavam passagem se precisassem estudar longe de casa. Os pais que podiam contribuíam com a “caixa escolar” para ajudar a escola a comprar o que o governo não mandava. A criança que adoecia e se ausentava da escola repetia de ano. Entrávamos de férias no começo de dezembro e só voltávamos em março.
No entanto, escrevemos e falamos hoje muito melhor do que as gerações que nos sucederam com todas as facilidades, com todos os privilégios, com todas as pedagogices, aprovações automáticas e com a extinção do dever de casa.
A norma culta é a natural para mim, mesmo sendo pobre. Tenho escolaridade, mas não sou da classe dominante, pois sou professora. Mesmo ensinando uma língua estrangeira em escolas públicas, é com a norma culta da língua portuguesa que me comunico com meus alunos e exijo que se comuniquem comigo.
Se a linguagem é formal ou informal, erros de gramática são e sempre serão corrigidos, independente de modismos ou do livro didático adotado pelo governo. Porque a linguagem informal, dona Heloísa, aquela que usamos para escrever um recado ou conversar com um parente, não tem que ser gramaticalmente incorreta!

Veja o tal livro com seus próprios olhos: http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/V6Cap1.pdf

Escritor, Carlos Eduardo Novaes, tira um sarro da escolha do MEC:

http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/05/16/livros-pra-inguinorantes-por-carlos-eduardo-novaes/

sábado, 30 de abril de 2011

Para o resto de nossas vidas

“Até que enfim é sexta-feira, vou entregar essas últimas encomendas no Centro e depois encontrar os amigos pra começar bem o final de semana.”
Tudo se encaminhava para um final de semana tranquilo. Dentro do carro, já conseguia visualizar o fim da noite no barzinho de sempre e, se o tempo ajudasse, até uma praia no sábado pela manhã. Bastava chegar ao Centro, entregar todas as peças das máquinas aos devidos escritórios e estaria livre.

“Ai, estou tão nervosa. A primeira etapa do processo seletivo foi tão difícil, nem acredito que consegui passar. Agora, não posso estragar tudo na entrevista. Que Deus me ajude!”
A entrevista estava marcada para as 16 horas. Imaginava os outros candidatos agendados antes dela. Para garantir que nada desse errado, estava saindo de casa com duas horas de antecedência.

“Pô, aí, não to a fim de assistir aula hoje. Olha esse sol! Vamos vazar! Minha mãe não tá em casa, vamos pra lá. Mas, ó, nada de passarela. Quero aventura hoje. Vamos atravessar a Brasil por baixo. Aposto que tu não chega primeiro do outro lado...”
Na mente, apenas a vontade de se divertir, de dar uns amassos longe da presença da mãe e a sensação de imortalidade que a juventude, aliada à total falta de responsabilidade e bom senso, pode oferecer.

Enquanto a professora passava a matéria no quadro, saíram de fininho e desceram as escadas do colégio. As merendeiras cozinhavam e a inspetora atendia uma mãe que trouxera o atestado do filho doente. O porteiro trancara o portão com cadeado e fora ao banheiro. “O portão tá trancado, mas, não tem erro, não! Hoje nada pode nos parar...”

Pularam o muro da escola. Com poucos metros de corrida, chegaram à Avenida Brasil. Na altura da passarela 16, se olharam e riram. Observavam os carros passarem em altíssima velocidade. Ele gritou para ela: “Agora, depois do ônibus!” Ela sentia seu coração disparado de medo. Mesmo assim, correu e conseguiram atravessar a primeira das quatro faixas.

No porta-mala do carro, as peças que deveriam ser entregues no Centro antes do final do expediente sequer trepidavam. Em plena sexta-feira, o trânsito estava livre, nenhuma retenção. Praticamente nenhum carro por perto. Com os olhos fixos na pista, mal podia acreditar que chegaria rápido ao seu destino. Passou pelo viaduto dos marinheiros e numa fração de segundos, uma grande explosão arrebentara seu parabrisa. No reflexo, parou o carro, mas não conseguia reunir forças para abrir a porta e sair para ver o que havia acontecido.

O coração estava disparado, a cabeça latejava, começou a achar que não havia sido uma explosão. Pensou que um corpo, provavelmente caíra do alto do viaduto em cima do carro. Olhou para um lado e viu carros parados nas pistas à sua direita. Pelo retrovisor, viu o corpo de um rapaz uniformizado, estudante da rede municipal. Do lado esquerdo, a pista de subida da seletiva também estava parada. Não conseguia ver o corpo da menina que atingira seu carro e voara por cima da mureta.

Ao ver os carros da polícia e dos bombeiros fecharem as pistas à sua frente, ela previu que não chegaria a tempo na entrevista para o emprego do qual tanto precisava. Estava há um ano desempregada. Queria ligar para o escritório, mas não tinha créditos no telefone. Enquanto os demais passageiros se erguiam e esticavam para descobrir o que acontecera, as lágrimas começaram a escorrer borrando sua pele maquiada.

Na escola, o porteiro voltara do banheiro a tempo de ver o casal de alunos pulando o muro. Quando acabou de reportar o ocorrido à diretora, ambos subiram imediatamente para tentar descobrir a que turma pertenciam os fujões e, em seguida, tentar avisar os pais. Foi então que ouviram a sirene da patrulha que acabava de estacionar diante da escola para dar a notícia do acidente. Ao ver o policial se aproximar, a diretora desejou não estar ali naquele momento.

Dentro do carro, o motorista chorava assustado. Não conseguia responder com clareza o que os policiais indagavam. Um dos bombeiros o examinou e confirmou seu estado de choque. Pensava nos planos que fazia para o final de semana segundos antes do atropelamento. Pensava estar vivendo um pesadelo.

No ônibus, o trocador percebeu o desespero da moça e puxou conversa. Minutos depois, abriu a bolsa e ofereceu o celular. A entrevista fora remarcada para segunda-feira. No escritório, todos já sabiam do engarrafamento. A notícia do acidente já estava nas rádios e na Internet.

“CASAL É ATROPELADO E 2 FAIXAS SÃO INTERDITADAS NA AVENIDA BRASIL, NO RIO, ESTA TARDE
Segundo os bombeiros, uma adolescente de 14 anos morreu no local.
Engarrafamento chega até o Caju. (29/04/2011)

sexta-feira, 25 de março de 2011

Quanto custa essa vaga?

Gastou os últimos trocados com passagem. Distribuiu seu currículo em quase todas as agências que conhecia no centro da cidade. Enviou-o para todos os sites gratuitos de busca de emprego. Fez uma lista de todas as empresas que gostaria de trabalhar, procurou-as na rede, preencheu fichas, redigiu cartas de apresentação e se cadastrou para todas as vagas possíveis e disponíveis. Contactou amigos, conhecidos e desconhecidos e implorou por uma indicação. Subiu a escadaria da Penha, fez promessa, acendeu vela e rezou com fé. Fez tudo o que podia. Agora só restava esperar.
Um dia, o telefone tocou. Com um português ruim, uma secretária anunciou que seu currículo havia sido selecionado por uma empresa que jamais ouvira falar. Mas o coração disparou. –– Se quero marcar entrevista? Claro! Amanhã? Oito horas. Estarei aí. Espera, espera... Qual o endereço? Ok, muito obrigado, hein. Boa tarde.
Pegou o da passagem emprestado. Acordou cedo e foi. Foi sonhando no ônibus lotado com o emprego. Nem sabia para que tipo de emprego havia sido selecionado, mas estava feliz por ter sido escolhido. Ensaiou possíveis respostas. Imaginou a cara do entrevistador. Aproveitou sua imagem refletida no espelho do elevador para checar olhos, cabelos, nariz, botões, zíper. Tudo certo.
Faltavam dez minutos para oito horas quando entrou na sala e se anunciou à secretária do português ruim que anotou seu nome e indicou um dos poucos lugares vazios. Ao redor, homens e mulheres com a cara amassada de sono e o aspecto pouco saudável de quem está desempregado há meses. Um entra e sai frenético. Alta rotatividade nas microssalas divididas por placas de fórmica encardidas.
Faltavam dez para as dez quando ouviu seu nome ser gritado de dentro de uma sala. Finalmente. Entrou, sentou. À sua frente, uma mesa com uma pilha de currículos intimidadora. Por trás da mesa, um rapaz com um terno de tergal e uma gravata cafona se preparava para recomeçar seu discurso decorado. Enquanto falava, alternava entre rabiscar círculos, bonecos e números em um currículo que parecia não ter sido aproveitado. De vez em quando, sobrava algum olhar na direção do “entrevistado” que, como nos talk shows da tv, praticamente não abria a boca.
Depois de dez minutos ininterruptos de pregação, veio a proposta:
–– Seu primeiro salário mais dez parcelas de cem reais se, em dezoito meses, conseguirmos uma vaga de emprego para você. Mas esse é o pacote Standard. No pacote Master, podemos treiná-lo em dinâmicas de grupo durante três meses pelo valor simbólico de mais duzentos e cinquenta reais. O que me diz? –– finalizou o discurso empurrando um prospecto com os diferentes planos e pacotes.
Na fração de segundo que levou para pegar o folheto e raciocinar que lhe estava sendo vendida uma vaga, que durante os meses em que supostamente faria o treinamento em dinâmicas de grupo não seria chamado para qualquer entrevista que dependesse daquela firma, que pegara dinheiro emprestado para a passagem, acordara cedíssimo e enfrentara ônibus lotado...

“PARAMÉDICOS CHAMADOS PARA SOCORRER AGENTE DE RH ENGASGADO COM PROSPECTO DA FIRMA APÓS ENTREVISTAR DESEMPREGADO FURIOSO”

(Imagem retirada de https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhzhCaHXhDf9WbjNVitjTF9ighiDi0kjfpLYhOS2doiwkFIfKyCSOnNd-Mkn4O2qWmIVAaU3gxoe8mRVnnLPo_fhgNTxn8Gtpc8A-_mY9ghhyphenhyphenjZ7o1mfMGbAsXV7S-3pJmVlu59nYJAZzY/s320/assalto.jpg)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

REVOLUÇÕES POR MINUTO

Noite de sonho na Praça Tahrir

Quando o homem primitivo inventou a roda, sua intenção possivelmente era facilitar o transporte das caças que abatia ou das pedras, lenhas e ferramentas tão necessárias para uma vida minimamente confortável na caverna e fora dela. Dificilmente, esse homem pensou que estaria revolucionando a história da humanidade, até porque o conceito e a consciência de história e de humanidade nem existiam.

Quando os artistas da Renascença tiveram coragem de expor suas obras, possivelmente sua intenção era, através da expressão artística, dar um grito de liberdade contra a opressão moral e religiosa medieval. Talvez, até tivessem consciência de que esse movimento revolucionaria os padrões e melhoraria as condições de vida da época, mas é pouco provável que soubessem estar criando uma nova era para a história da humanidade.

Quando os primeiros poetas italianos do séc. XVIII, romperam com a caretice barroca, propondo um estilo que primava pela simplicidade, pelo equilíbrio, pela preocupação com o que era natural e social, certamente buscavam um mundo em que mais pessoas tivessem acesso à literatura, à beleza expressa pela arte, um mundo menos sombrio, pomposo e com menos culpa. Provavelmente, através do Arcadismo, perseguiam apenas o sonho proposto pelo Iluminismo, não imaginavam participar de uma revolução que abraçaria o fim do Absolutismo e a tomada do poder pelos burgueses, mais uma vez, um novo marco para a história da humanidade.

Em tempos mais recentes, a inviabilidade da onipresença – de ouvir, ver e testemunhar tudo todo o tempo – empurrou para o homem o legado de criar uma forma de registrar sons e imagens e transmiti-los. Assim, o telefone, o rádio e a televisão surgiram para complementar (e não substituir) o livro e a imprensa, que isolados já haviam representado uma enorme revolução de hábitos e costumes de massa.

Olhando dessa maneira, tem-se a impressão de que o desconforto, a crise, o incômodo são os estopins para grandes transformações globais. Nos dias de hoje, se tomarmos como exemplo as últimas revoluções populares iniciadas com as manifestações contra o aumento do preço do açúcar na Tunísia, passaram por um jovem egípcio que suicidou ateando fogo ao próprio corpo, derrubando os governos de ambos os países e bagunçando o mundo árabe, tal impressão se confirmará.

Mas, assim como no exemplo da invenção da roda, nem sempre as revoluções precisam ser sangrentas para serem avassaladoras. O mundo absorveu, mas ainda não compreendeu totalmente a revolução assustadora causada pelo computador. Se há dez anos ainda havia grande resistência por parte dos mais velhos ao uso dessa máquina, hoje a grande maioria já se rendeu. Raramente, encontra-se alguém que não tenha conta de e-mail.

Porém, a associação do computador às mídias já existentes, como rádio, tv e telefone, ainda engatinha, não exploramos um terço das possibilidades de uso e inovação que essa mistura pode oferecer. Ou seja, vivemos um tempo de revolução em processo.

Enquanto isso, outras revoluções acontecem todos os dias em menores ou iguais escalas mundo afora e mexem diretamente com a vida das pessoas alterando, inclusive, seu modo de enxergar a história. Anônimos ou famosos lançam faíscas de revoluções que podem se alastrar imediatamente, ou queimar bem devagar, levando décadas para incendiar velhos conceitos e forçar uma reconstrução.

E essas faíscas estão por todo lado, até por aqui. Se, por um lado, há nomes, como Paulo Borges, Lula, Fernando Meirelles e Seu Jorge, que vêm ajudando a imprimir um novo conceito de Brasil para o mundo e inserindo o país em novas rodas, por outro, há nomes de personalidades que plantaram e cultivaram boas sementes, mas morreram sem vê-las geminar, entre elas Van Gogh, Galileu, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Emily Dickinson e tantos outros.

Entretanto, pode-se dizer com segurança que um ponto une todas essas pessoas, além obviamente do fato de terem sido revolucionárias no que se propuseram fazer. Antes do desconforto, da crise e do incômodo, um outro fator moveu essas pessoas. Todos seguiram seus sonhos, ainda que muitos duvidassem deles. E, principalmente, ainda que muitos discordassem deles. Um sonho não precisa ser grandioso nem unânime, ele só precisa de fé e perseverança para acontecer. E em pequena ou grande escala, toda vez que um sonho se realiza, uma revolução acontece. Faça a sua!

(Foto from noticias.r7.com)

domingo, 23 de janeiro de 2011

Música pra quê?

Dezoito horas. Garoava e minha barriga doía de fome. Desliguei o aparelho de som e liguei a TV. John Lee Hooker inundava de som as imagens da TV Brasil. Enquanto devorava meu almoço sem mastigar, ouvia o blues de Hooker e pensava em quantas coisas boas deve haver nos arquivos das tvs as quais não nos dão acesso. Hooker deu lugar a BB King que deu lugar a Lizz Wright. Uma negra de cabeça raspada, muito bem vestida e maquiada e dona de uma voz magnífica.

Do almoço não sobrara migalha, mas a cabeça continuava trabalhando. Enquanto meus ouvidos devoravam aquela voz pouco conhecida, pensava em artistas de fama mundial que fazem o privilégio de viver de arte, viajando o mundo inteiro e recebendo milhares de pessoas que os querem ouvir, parecer um ofício penoso e infeliz.

Ao passo que olho para o lado e vejo músicos com muitos anos de batalha e tão talentosos quanto, sem espaço ou repercussão para o trabalho que realizam. No entanto, afirmo com convicção que nenhum deles encara sua arte como um fardo, nenhum deles sobe ao palco bêbado ou age de forma desrespeitosa com seu público, seja ele formado por cem ou por seis pessoas.

Na minha adolescência, curtia o som de um branquelo americano que tivera uma infância pobre no interior do país, montou uma banda de rock e viajou o mundo inteiro falando um monte de bobagens em suas músicas e abusando das drogas. Promovia orgias, bebedeiras e quebrava quartos dos hotéis por onde passava.

A banda, sem dúvida, era carismática, o som era intenso. Mas hoje minha ótica foca na oportunidade que esses caras tiveram para, por meio da música, evoluir como artistas e como pessoas e a desperdiçaram. Obviamente, o acesso à fama e a salários astronômicos tende a corromper os valores, especialmente daqueles que vieram de condições restritas. Mas, de vez em quando, surgem exemplos de artistas que tiveram histórias de vida ainda mais difíceis e conseguiram usar a arte para reverter a situação em que se encontravam.

E há também aqueles casos de músicos talentosíssimos que só querem levar um som e viver a vida do jeito que der, sem se preocupar com fama ou fortuna. Os que tocam pela cervejinha, pelo prazer da companhia dos colegas de profissão, pela diversão. E parece que essa despreocupação torna o som deles mais emocionante, mais autêntico, mais feliz. Esses fazem história.

Aqui na Penha, na década de 1970, artistas desse naipe fizeram do botequim chamado Sovaco de Cobra uma referência do chorinho na cidade. O botequim da rua Francisco Enes conseguia a proeza de reunir Nélson Cavaquinho, Paulo Moura, Guinga, Rafael Rabello, Maurício Carrilho, entre outros.

Segundo o “Almanaque do Choro” (Ed. Jorge Zahar, p. 45), o Sovaco foi um tradicional botequim carioca, situado no “musical subúrbio da Penha”, ponto de encontro dos grandes chorões. Tendo sido, inclusive, homenageado por um dos freqüentadores, o clarinetista Abel Ferreira, na música “Chorinho do Sovaco de Cobra”. O boteco também tem destaque no documentário “Brasileirinho” que conta a história do gênero musical.

Reza a lenda que, no prédio em que morei com meus pais, havia um vizinho freqüentador do tal botequim e ele levou um dia Nelson Cavaquinho até sua casa, incluindo no passeio uma visita ao meu pai, um admirador confesso do músico. Não sei se eu já era nascida na época e, provavelmente, ninguém teve a brilhante ideia de registrar o momento para a posteridade. Mas, folclore ou não, é bom saber que um representante da nata da música popular brasileira já esteve em minha casa, ainda que eu nem more mais lá!

O tempo passou e a Penha deixou de ser reconhecida pela musicalidade. Quem sabe se não surgirá uma casa nova disposta a resgatar essa tradição de boa música no bairro? Até agora os bares locais em nada têm contribuído para esse resgate cultural. Enquanto espero sentada, penso no poder da música.

Mais do que qualquer avião, a música é capaz de rodar o mundo e de fazê-lo girar. Há quem duvide do seu alcance. Mas quem desconfia que em um bairro suburbano, antiga referência de chorinho, em uma cidade maravilhosa de um país da América do Sul, uma pessoa ouvia um disco do gótico inglês Peter Murphy, antes de sentar para almoçar e se deparar com John Lee Hooker na TV?

Conheça Lizz Wright no Utube em http://www.youtube.com/watch?v=fZDMyMOlB1w&feature=related

Foto em preto e branco do Sovaco de Cobra retirada do "Almanaque do choro...", p. 44.