quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Novo acordo de português

Agora que as modificações já nos foram introduzidas goela abaixo sem ao menos um molhozinho para lubrificar, só nos resta decorar e lamentar. Esse novo acordo da língua portuguesa é a pedra no sapato de revisores e concursandos. Não consigo enxergar ninguém, além dos envolvidos com o setor editorial, que tenha obtido qualquer vantagem com esse bendito acordo ortográfico. Simplesmente porque ele não faz o menor sentido! Analisemos algumas de suas inutilidades.

Todos já consideravam as letras K, W e Y como parte integrante do nosso alfabeto há tempos. Basta ver a quantidade de crianças registradas diariamente com nomes derivados das mentes criativas de pais perversos nos quais figuram essas letras – às vezes, as três no mesmo nome!

Desconheço mortal que tenha coragem de admitir apreço pelas regras de acentuação de nossa língua, mas, convenhamos, a queda do acento diferencial não facilita em nada a vida de quem lida com a forma escrita. Serve apenas para incentivar o já grande número de pegadinhas que não para de crescer nas provas e concursos de língua portuguesa. Chego a sentir os pelos arrepiarem com as questões escabrosas que encontraremos pelos vestibulares daqui pra frente.

Mas a grande piada de mau gosto foi reservada para o hífen! Senhoras e senhores, chegamos ao ponto máximo de inutilidade do tal acordo. Se antes já era difícil de memorizar todas as regras, agora teremos que desaprender o pouco que sabíamos. Vejam o grau de contradição com requintes de crueldade para os nossos cérebros cansados.

Antes da adoção dessas novas regras, usávamos hífen antes de sufixos iniciados em “r” e “s”, como em ultra-sonografia e auto-retrato. Agora não precisamos mais separá-los. Basta que se juntem as palavras, dobrando as letras em questão. A nova grafia passou a ser ultrassonografia e autorretrato.

Por analogia, também deveríamos tirar o hífen de palavras cujo prefixo termina em “r” e o sufixo começa com a mesma letra. Sendo assim, super-resistente, passará a ser superresistente, certo? Errado! Nesse caso, o hífen é mantido. Por quê? Sei lá.

Tudo bem, escorregaram nessa. Mas, pela lógica, então, palavras cujo prefixo termina com vogal e o sufixo começa com a mesma letra também devem ser separadas por hífen, como em micro-ônibus. Isso mesmo! Essas passam a ser separadas por hífen. Mas, se a vogal final do prefixo e a inicial do sufixo forem diferentes, o hífen desaparece, como em autoajuda. Ai, ai, ai! Por que não tiraram logo todos os hífens de uma vez?

Mas não para por aí! Alguém pode me explicar por que pára-quedas perde o hífen e guarda-chuva, não? Segundo o texto do acordo, o sinal cai “em compostos que, pelo uso, perdeu-se a noção de composição”. Em um mundo de gente sem noção como o nosso, alguém sabe explicar exatamente o que isso significa?

O acordo diz que guarda-chuva permanece com hífen, porque o composto “constitui uma unidade sintagmática e semântica”. Não seria isso a “noção de composição”? Então, pára-quedas não deveria permanecer separado também? Por favor, se alguém puder elucidar essas dúvidas que, acredito, não são só minhas, fique à vontade para utilizar esse humilde blog no que seria um serviço de utilidade pública.

Desde pequena, sempre fui contra o decoreba. Achava que tudo que era útil não precisava ser decorado, pois era automaticamente aprendido. Olhava o mapa do Rio Amazonas e seus afluentes como quem olha o Guia Rex em busca de uma rua num bairro distante. Consultaria o Atlas se um dia fosse à Amazônia. Caso contrário, não via a menor utilidade em decorar aqueles nomes todos. O decoreba era reservado ao que era irrelevante. (E olha que nem conhecia Paulo Freire naqueles tempos!)

Agora me vejo nesse mato sem cachorro, forçando a vista e a cabeça para internalizar regras que não fazem o menor sentido. Decoro-as por 5 minutos, quando preciso consultá-las e logo esqueço novamente. Será que a matéria prima (com ou sem hífen?) que utilizo para me expressar e, de certa forma, para existir virou conteúdo para ser decorado e não mais sentido? Tudo isso para vender mais livros... O acordo atinge 5% da língua e 100% da paciência de quem precisa usá-la corretamente. Dessa piada de português, ninguém achou a menor graça. Nem nós, nem eles!