segunda-feira, 17 de abril de 2006

Cara a tapa

"Meu coração é uma máquina de escrever ilusões
É só você bater pra entrar na minha história"
("Máquina de Escrever" – Mathilda Kóvak e Luís Capucho)

Duas amigas solteiras conversam e bebem. Uma, a decepcionada, enumera para a outra, que prefere não arriscar nunca, as desilusões que vem sofrendo nos últimos tempos. "Não acerto uma..." Se acertasse não estaria lá para contar história. A que ouve só balança a cabeça, ora de cima para baixo, concordando, ou endossando secretamente suas próprias convicções, ora da direita para a esquerda, lamentando pelas desventuras e caras quebradas da amiga desiludida. "Se os gatos têm sete vidas", filosofa a sofrida, "que bicho sou eu que tenho várias caras. Não me canso de parti-las." Que bicho será ela?

Quando já não havia mais espaço no muro, as lamentações tomaram um outro rumo, sem contudo deixar de sê-las, o cinema. Depois de tantos copos, as memórias se confundem, mas da turbulência de imagens hollywoodianas, algumas lembranças emergem intactas e oportunas para ilustrar a sina-das-mulheres-que-sempre-se-dão-mal. Ponto Final, de Wood Allen. “O que era aquilo? Não bastava o mocinho matar a que foi desejada, assediada e, depois de muita insistência, transformada em amante, ainda tinha que se dar bem no final?”

Também já um pouco tonta, a amiga convicta resgata Código 46. “O Tim Robbins transforma a suspeita do crime que investiga em sua amante, a engravida, a incrimina, e, no final, depois de ter a memória apagada, volta para casa, para a esposa e o filho. Vivem felizes para sempre. A suspeita fica desempregada, exilada, sozinha e lembrando de tudo...”

Furiosos, os circundantes que não haviam assistido aos filmes, mas prestavam atenção ao chororô das amigas pra lá de alcoolizadas e amarguradas, resolvem dar o troco por terem o final dos dois filmes revelados, comentando duas fábulas do noticiário daquela noite – “o brasileiro está casando mais e mantendo por mais tempo seus casamentos”...

Ao ouvir o comentário dos descontentes, a amiga que nunca desiste tenta convencer a que nunca se arrisca, e a si mesma, de que a culpa é só delas: "Se você não tem namorado é porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando duzentos quilos de grilo e medo, ponha a saia mais leve, aquela de chita e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesmo e descubra o próprio jardim." A que nunca se arrisca lembra vagamente de já ter ouvido aquilo antes, mas desiste de descobrir quando e onde, pois percebe que precisa levar a amiga intrépida para a casa. Ambas cambaleantes, continuarão solitárias por muito tempo ainda, mas sempre amigas.

Sugestões:
Para os ouvidos solitários
– “Máquina de Escrever”, com Pedro Luís e A Parede, em Astronauta Tupy.
– “Amor Algum”, de Djavan, em Vaidade.
Para olhos solitários
– “Ter ou não ter namorado”, de Artur da Távola.

A ilustração que melhora esta coluna é de Anderson Ferraro. Thanx, Sir!

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