sábado, 2 de janeiro de 2010

Pesadelo na ilha dos sonhos

O vírus da estrada se instalou em meu sangue desde pequena. Lembro bem de ainda estar usando fraldas quando fiz minha primeira viagem. A família toda, malas, sacos de viagem, lanches e muitas horas de ônibus até o Rio Grande do Sul. Depois desta, muitas se sucederam.

No início da década de 80, a família toda apertada num Opalão caramelo descia as curvas da Rio-Santos, rumo a Angra dos Reis. Minha tia que morava conosco se casara e se mudara para o paraíso tropical. Na primeira viagem, ao chegar à cidade e ver a placa de um dos primeiros resorts a se instalar ali, perguntei ao motorista ingênua: “– Pai, estamos em Portugal?”. A gargalhada foi geral.

Passei muitos verões com ela. De início, dependia de alguém para me levar e buscar. Nos últimos, já na universidade, ia e voltava só. Meus primeiros passos para a independência. Muitas foram as vezes em que precisei retardar meu regresso devido a quedas de barreiras na estrada. Em várias destas temporadas em Angra, pude contar nos dedos os dias de sol. Ia mesmo pela companhia, pois sabia que a probabilidade maior seria ficar presa dentro de casa.

Abaixo, trilha em Ilha Grande em 2008.

Um dia, descobri Ilha Grande. Estranho ter estado tão perto durante toda a infância e nunca ter ido até lá. Foi uma paixão fulminante. O primeiro mergulho. A água morna do mar. Nem um dia de chuva. A melancolia no regresso. Sonhei com a Ilha muitas vezes e acordava feliz em todas elas. Apesar disso, levei seis anos para me dar de presente outra temporada por lá em 2008. Mas algo havia mudado. Não sei se em mim ou na Ilha.

No álbum que montei na Internet, me refiro a ela como “melhor lugar do mundo”. O sol continuava lá me acompanhando todos os dias e bronzeando as lembranças molhadas da infância em terra firme. Mas o excesso de turistas dava um ar confuso à Ilha. O mar revolto me assustou algumas vezes, deixou a água turva para o mergulho e quase virou o barco na volta do passeio a Lopes Mendes. Apesar disso, voltei com a sensação de que o presente valeu.

Sempre sinto medo nas viradas de ano. Um medo contido e escondido. Vou dormir após a ceia e os fogos com medo das notícias do dia primeiro. Entra ano e sai ano, a sensação é de que há sempre uma tragédia à espreita. Tenho medo também do que o futuro reserva. Mas procuro adiar a hora de dormir ou me confortar com a esperança de que nada ruim acontecerá.

Na primeira noite de 2010, a Ilha voltou aos meus sonhos. Mas acordei triste no meio da madrugada. Sonhei com uma avalanche me empurrando para dentro do mar. Fruto das imagens vistas nos noticiários. Que pena o “melhor lugar do mundo” ter sido o cenário para tão tristes notícias. Pena ter virado referência de tristeza e dor para tantas famílias. Mesmo assistindo a tudo de longe, vou demorar para lembrar da Ilha como antes.

Que descansem em paz todos aqueles que a água levou em seus braços. Força e fé para os que ficam e precisam continuar.

Acima, Cunha: outra cidade devastada pelas chuvas do ano novo.
Foto de 1º de janeiro de 2004.

7 comentários:

Alcivia disse...

Seur,

Compartilho contigo estes sentimentos.
Parece que o paraíso, onde passamos tantos momentos felizes não consegue resistir às agressões causadas pela espécie humana (a única que destrói sua própria casa).
Só nos resta erguer aos céus nossas preces, implorando a Deus que dê luz e conforto aos que foram e aos que ficaram, e que tenha piedade de nós e dos nossos, para que estejamos sempre livres destas e de outras catástrofes.

Unknown disse...

Realmente é lamentável este fato ocorrido neste local paradisíaco. Neste episódio, em que a natureza se manifestou ceifando vidas e alegrias, podemos dizer que toda a sociedade tem uma parcela de culpa.Sem querer fazer sarcasmo da situação, enquanto Deus tem a capacidade de mover montanhas, nós, pobres mortais, temos a capacidade de desmoronar estas montanhas, pagando um preço com elevado ágio.Beijos. Alberto Nunes

Flávia Guilherme disse...

Nem sei o que dizer...

TS disse...

Eu tbm tenho mtas lembranças de Angra, acampamentos do colégio e passeios de iate(não, não sou rica, mas tinha amigos q trabalhavam p/ os ricos, e qdo o patrão pedia "leve meu barquinho até lá", pegávamos carona na ida e voltávamos de bus).
A tragédia recente tem duas palavras: ganância e falta de fiscalização.
Paraísos terrestres não são confiáveis - veja os tsunamis nas praias cristalinas no Índico!
Qto às almas perdidas, é a purificação periódica.

sara disse...

Well, a palavra "purificação" é um pouco forte. Quem sofre com a perda de entes queridos, não acha que o mundo ficou mais "puro" sem eles. Talvez a ideia da "seleção natural", de Newton, caiba melhor. Q tal?

TS disse...

Expliquei melhor o sentido de "purificação" por email; há de concordar comigo! A dor é de quem fica, não de quem vai!

sara disse...

Concordo, sim! bjão