sábado, 17 de abril de 2010

Língua suja

Nós rimos alto, bebemos e falamos palavrão.

Quando eu era pequena, meu pai não me queria no botequim nem na venda. Os donos desses estabelecimentos eram senhores portugueses. E, na condição de portugueses, eram também muito desbocados. Na ilusão de proteger a mim e minhas irmãs de todo o mal e de todas as impurezas do mundo, ele nos mantinha afastadas dos comerciantes lusitanos e de estádios de futebol.

Palavra viva
Palavra com temperatura, palavra
Que se produz Muda
Feita de luz mais que de vento, palavra

Crescidas, falamos palavrões. Eu, particularmente, quando dou uma topada na quina do armário ou quando algum eletrodoméstico essencial se recusa a funcionar. Mas evito usá-los em público. Só em pensamento. Ou em voz baixa durante a TPM.

Mas o que deveria mesmo ser protegida era a língua, não as pessoas. Os palavrões mais cabeludos viraram banalidade até nas conversas em ambiente de trabalho. Antes, os meninos jogavam bola na rua e não xingavam se uma mulher estivesse passando. Hoje, nem as idosas são poupadas.

Soltar aquele palavrão horroroso em um momento de revolta já não tem a menor graça. Pois, estão em falta palavrões que choquem. Todos os existentes ficaram fracos de tanto que são repetidos. Amigos se saúdam com dois ou três daqueles bem grandes numa mesma frase. Dá até para imaginar o encontro: “– Oh, seu f.... .. p..., p... q.. p...., tu anda sumido, seu v....!” Tudo isso, é claro, em alto e "bom" som, como quem canta um hino.

Palavra dócil
Palavra d'agua pra qualquer moldura
Que se acomoda em balde, em verso, em mágoa
Qualquer feição de se manter palavra

Chega a dar tristeza de ouvir uma frase com verbos discordantes, pronomes equivocados e uma infinidade de adjetivos impronunciáveis. Mas a verdade é que essa é a nova regra, não prevista em qualquer acordo ortográfico. A favelização da língua chegou com a força destruidora de um tsunami, atingindo pobres e ricos, vagabundos e trabalhadores, descolados e conservadores.

Onde escrevi favelização, leia-se empobrecimento. Pois, não sei se já reparam, mas tudo o que é ruim, imoral (e engorda) é associado com os menos favorecidos, nunca com a elite. Mas lembro perfeitamente de uma reportagem do SBT Repórter, há alguns anos, em que o jornalista Hermano Henning entrevistou um grupo de refugiados angolanos que, com suas famílias, caminhavam por uma estrada fugindo da guerra civil.

Ao ouvi-los, não pude evitar algumas lágrimas, movidas por sentimentos diferentes: compaixão pelo sofrimento e pelas condições precárias que enfrentavam; alívio por saber que estavam se salvando; e um misto de orgulho e inveja ao constatar que, apesar de tanta miséria, aqueles irmãos de raça falavam um português absolutamente irrepreensível, como há muito eu não ouvia por aqui.

Palavra boa
Não de fazer literatura, palavra
Mas de habitar
Fundo
O coração do pensamento, palavra

Então, tratemos logo de esclarecer este mal entendido: o empobrecimento da língua não está necessariamente ligado à decadência econômica. Até porque a Angola é um país muito mais pobre do que o Brasil, e seu povo fala melhor do que o nosso. E o Brasil está bem menos pobre do que já foi, e seu povo anda falando pior do que nunca.

Brasileirinho
Pelo sotaque
Mas de língua internacional...
De um povo-chocolate-e-mel

Aproveitei o carnaval deste ano para curtir São Paulo. Em visita ao belo Museu da Língua Portuguesa, ouvi a seguinte frase na voz de Fernanda Montenegro: “A nossa língua é o nosso melhor retrato, nossa pátria mais profunda".

Meu Deus, será mesmo?

Falamos a sua língua, mas não entendemos seu sermão.

Citações:
“Volte para o seu lar”, de Arnaldo Antunes
“Uma palavra”, de Chico Buarque
“Refavela”, de Gilberto Gil

5 comentários:

Alcivia disse...

Seur,

É verdade!!!!
Por mais que o pai tenha tentado nos proteger, fomos atingidas por estas expressões que outrora eram usada em momentos de raiva ou de dor. Hoje, viraram banais e muitos inclusive se espelham no que há de pior, em relação ao uso de nossa língua, e o reproduzem.
Mas o que tem agredido muito meus ouvidos, têm sido equívocos cometidos nos meios de comunicação que, por conta da globalização, atingem jovens e velhos, brancos e negros pobres e ricos que absorvem e repassa essas asneiras.
Em fim, "só nos resta viver"(*) apesar dos pesares.

(*)Ângela Rôrô

Unknown disse...

Olá, querida Sara.
Primeiramente gostaria de parabenizá-la pelo título antecipado do seu Botafogo.Creio que este feito contribuiu para evitar as lágrimas de tristezas alvinegras e com isso, não aumentasse ainda mais os problemas das enchentes que assolaram ou assolam os cidadãos do nosso Estado.
Quanto a questão da "Língua suja", me preocupo mais com as "línguas negras" das favelas,ou melhor, das comunidades, dos condomínios de classe média sem tratamento de esgoto.A propósito, Lula e Cabral cumpriram o prometido: levaram água e esgoto para a casa de todo mundo. O próximo passo é criar a BALSA FAMÍLIA.
Pra encerrar, para não ficar de cara limpa ou de língua limpa, em razão da derrota do meu menguinho vou desfiar uma sucessão de palavrões: José Roberto Arruda, Maluf, Jader Barbalho, César Maia, Eurico Miranda, Ricardo Teixeira, Pedro Álvares Cabral(o TATATATATATATATAT Avô do Governador Sérgio Cabral), merd , pqp, PP, PTB, PDC,PMDB e outros pês(O loco(Abreu)Abreu meu !).
Abraços
Alberto

sara disse...

Ai, q horror, q professor desbocado!!! kkkkkk

TS disse...

Cara Sarinha, desculpe a demora...

Dizem que eu sou mto careta por dizer que os rappers e funkeiros empobreceram a língua portuguesa; em parte, sei que tenho razão.
Outro dia, assisti à uma entrevista c/ a Heloísa Buarque de Hollanda (ui!) incensando os jovens poetas que inventam palavra mais do que o Guima Rosa; tudo bem, mas desde que não esculhambem o idioma!
Qto aos nomes ditos "feios", até nisso é relativo;
minha vó berrava "Vá pra ponte que te partiu!", aí a gente corrigia, "Não é assim, não, vó, é 'vá pra PQTP'!!" - a mãe ouvia, e lá vinha castigo. Lá em PT, evite usar "broche", p.f.; diga, presilha ou travessa. (rs)

Eu agora tô na fase de ressuscitar palavras; como meu linguajar fica entre PT/BR, acabo por usar termos de lá junto aos de cá, ainda misturo c/ o mineirês e o cearense.
Essa é uma das coisas mais bacanas que vejo em nossa língua!
O inglês, é uma pobreza.
O francês, um barroquismo.
O alemão, rascante. (depois tem que chupar - opa! - muita pastilha!)
O espanhol, romântico.
O italiano, uma per-di-ção!
O internetês, uma imbecilidade total!

Nada como um palavra de baixo calão qdo nos enchem o S... e a gente quer dar um chute nos C...S do outro!
Tive um prof. que só "xingava" (c/ 'x', mesmo) em língua de analfa.

notinha: sou "framengo".

Boa semana!

Anônimo disse...

Querida Sara acredite se quiser, com o passar dos anos tenho tido dificuldades na escrita e na fala, ignorância mesmo!
O texto é bem atual e, ainda bem que temos pessoas que se importam e se comprometem com a nossa língua!!!