domingo, 23 de janeiro de 2011

Música pra quê?

Dezoito horas. Garoava e minha barriga doía de fome. Desliguei o aparelho de som e liguei a TV. John Lee Hooker inundava de som as imagens da TV Brasil. Enquanto devorava meu almoço sem mastigar, ouvia o blues de Hooker e pensava em quantas coisas boas deve haver nos arquivos das tvs as quais não nos dão acesso. Hooker deu lugar a BB King que deu lugar a Lizz Wright. Uma negra de cabeça raspada, muito bem vestida e maquiada e dona de uma voz magnífica.

Do almoço não sobrara migalha, mas a cabeça continuava trabalhando. Enquanto meus ouvidos devoravam aquela voz pouco conhecida, pensava em artistas de fama mundial que fazem o privilégio de viver de arte, viajando o mundo inteiro e recebendo milhares de pessoas que os querem ouvir, parecer um ofício penoso e infeliz.

Ao passo que olho para o lado e vejo músicos com muitos anos de batalha e tão talentosos quanto, sem espaço ou repercussão para o trabalho que realizam. No entanto, afirmo com convicção que nenhum deles encara sua arte como um fardo, nenhum deles sobe ao palco bêbado ou age de forma desrespeitosa com seu público, seja ele formado por cem ou por seis pessoas.

Na minha adolescência, curtia o som de um branquelo americano que tivera uma infância pobre no interior do país, montou uma banda de rock e viajou o mundo inteiro falando um monte de bobagens em suas músicas e abusando das drogas. Promovia orgias, bebedeiras e quebrava quartos dos hotéis por onde passava.

A banda, sem dúvida, era carismática, o som era intenso. Mas hoje minha ótica foca na oportunidade que esses caras tiveram para, por meio da música, evoluir como artistas e como pessoas e a desperdiçaram. Obviamente, o acesso à fama e a salários astronômicos tende a corromper os valores, especialmente daqueles que vieram de condições restritas. Mas, de vez em quando, surgem exemplos de artistas que tiveram histórias de vida ainda mais difíceis e conseguiram usar a arte para reverter a situação em que se encontravam.

E há também aqueles casos de músicos talentosíssimos que só querem levar um som e viver a vida do jeito que der, sem se preocupar com fama ou fortuna. Os que tocam pela cervejinha, pelo prazer da companhia dos colegas de profissão, pela diversão. E parece que essa despreocupação torna o som deles mais emocionante, mais autêntico, mais feliz. Esses fazem história.

Aqui na Penha, na década de 1970, artistas desse naipe fizeram do botequim chamado Sovaco de Cobra uma referência do chorinho na cidade. O botequim da rua Francisco Enes conseguia a proeza de reunir Nélson Cavaquinho, Paulo Moura, Guinga, Rafael Rabello, Maurício Carrilho, entre outros.

Segundo o “Almanaque do Choro” (Ed. Jorge Zahar, p. 45), o Sovaco foi um tradicional botequim carioca, situado no “musical subúrbio da Penha”, ponto de encontro dos grandes chorões. Tendo sido, inclusive, homenageado por um dos freqüentadores, o clarinetista Abel Ferreira, na música “Chorinho do Sovaco de Cobra”. O boteco também tem destaque no documentário “Brasileirinho” que conta a história do gênero musical.

Reza a lenda que, no prédio em que morei com meus pais, havia um vizinho freqüentador do tal botequim e ele levou um dia Nelson Cavaquinho até sua casa, incluindo no passeio uma visita ao meu pai, um admirador confesso do músico. Não sei se eu já era nascida na época e, provavelmente, ninguém teve a brilhante ideia de registrar o momento para a posteridade. Mas, folclore ou não, é bom saber que um representante da nata da música popular brasileira já esteve em minha casa, ainda que eu nem more mais lá!

O tempo passou e a Penha deixou de ser reconhecida pela musicalidade. Quem sabe se não surgirá uma casa nova disposta a resgatar essa tradição de boa música no bairro? Até agora os bares locais em nada têm contribuído para esse resgate cultural. Enquanto espero sentada, penso no poder da música.

Mais do que qualquer avião, a música é capaz de rodar o mundo e de fazê-lo girar. Há quem duvide do seu alcance. Mas quem desconfia que em um bairro suburbano, antiga referência de chorinho, em uma cidade maravilhosa de um país da América do Sul, uma pessoa ouvia um disco do gótico inglês Peter Murphy, antes de sentar para almoçar e se deparar com John Lee Hooker na TV?

Conheça Lizz Wright no Utube em http://www.youtube.com/watch?v=fZDMyMOlB1w&feature=related

Foto em preto e branco do Sovaco de Cobra retirada do "Almanaque do choro...", p. 44.

8 comentários:

Anônimo disse...

que lindo, sara!
eu adorei essas referências ao subúrbio.
sempre penso na música do mundo livre s/a: "não espere nada do centro/se a periferia está morta".
e aplico esse pensamento à relação metrópole/colônias, zona sul/zona norte, sala de estar/cozinha, elevador social/elevador de serviço...
e esse contraste tá sempre presente nos meus pensamentos, até porque - não adianta - sou suburbano.
e antes de despedir-me, tenho que concordar que esse negócio de viajar o mundo apresentando aquilo que a pessoa faz de melhor e ama executar, em troca de alguns mil e poucos ingressos vendidos é mesmo um ofício penoso e infeliz.
tenho pena dessa gente.
cambada de miseráveis.

sara disse...

Vc é sensacional, meu amigo.
Q bom q vc existe!
Obrigada pela companhia.

TS disse...

querida Sara,
antes de mais nada, já disse que meu relógio gira noutro compasso:
não esqueci do seu níver, apenas fiquei incomunicável na roça;
mas desejo-lhe felicidades ao longo de + um ano, e não pense q a vida campestre
é tããããõ bacana assim, quase sempre é "meio" purgatório" (pq vc comentou sb ser "lindo" ter patinhos e pintinhos zanzando entre as pernas...)ao som de viola.

qto ao seu txt:
Winehouse como pessoa é uma droga, mas como artista é fenomenal;
no início eu tinha má vontade em ouvi-la, agora ouço-a s/ olhar pra cara dela.
Seja ela ou qualquer outro(a), a música é indispensável e não sigo modas, ao contrário,
gosto de ouvir coisas antigas, agora dei pra cantarolar "voulez-vouuuus..." igual a Meryl Streep cantanto ABBA (argh!) em "Mamma Mia!", aquele filme brega pra daná! - Rsssss.
Ser artista é doloroso, nunca se sabe como será o amanhã... mas não será assim c/ todo ofício, seja metropolitano ou da periferia em deusmelivre?
Bjj. Tine.

Unknown disse...

Olá Sara tenho 25 anos e moro na rua enes filho(rua vizinha à francisco enes ) rua esta que abrigou o suvaco de cobra. Desde pequeno ouço falar do lendário bar que um dia foi reduto da bohemia carioca. Há tempos atrás me falavam e eu nao dava importancia ao fato de morar nun lugar tao importante pra musica brasileira, hoje eu sou um apaixonado por samba e choro e por falar em chora pra que gosta todas quintas-feira rola um chorinho em bras de pina no bar Original do Brás vale a pena conferir fica a dica pra todos que apreciam esta maravilha q é o chorinho.
meu msn é mv19@msn.com
fiquem a vontade para add e trocaremos ideias sobre musica boa e outras coisas maravilhosas do nosso Rio de janeiro.

sara disse...

Oi, Lekão!

Fico feliz que uma pessoa que mora na área e seja tão nova qnto você se interesse pela história de nosso bairro. Especialmente, por se tratar de local que vem sendo tão associado a assuntos negativos. Acho importante aproveitar toda e qualquer oportunidade de resgatar a vocação da Penha para a cultura.

Por isso e também por sua útil e interessantíssima participação no Nervo Óptico, aceite meu sincero agradecimento.

Valeu pela dica do chorinho das 5as no Original do Brás, aliás um bar bem charmoso!

Unknown disse...

Prezada amiga Sara :
Sinceramente você se superou e foi muito feliz nesta presente crônica. Aliás,mais do que uma crônica, trata-se de um breve passeio histórico acerca da riqueza cultural presente neste outro lado do tunel. A boa música está no DNA do brasileiro e, em particular, nos rincões do Rio de Janeiro. Salve Noel Rosa, Pixinguinha, bem como inúmeros outros bambas da MPB. O ar que respiro contém sons, dos mais diversos ritmos musicais.Portanto, enquanto houver música haverá salvação.
Beijos. Alberto

sara disse...

Feliz fico eu com seu comentário poético, PROFESSOR!
Muito obrigada pela companhia!

Unknown disse...

Não precisa esperar sentada, pode se levartar!!! Moro na rua francisco enes. Tem um chorinho todo primeiro domingo do mês na rua enes filho( rua paralela a francisco enes) qq pergunta - rafaelpaysan@yahoo.com.br