segunda-feira, 21 de agosto de 2006

Janela indiscreta

Noite de sexta-feira, no 402. Nada de pedidos por telefone. A noite está fresca. Foi pessoalmente ao restaurante pedir seu yakisoba clássico. O atendente, com forte sotaque nordestino, porte franzino, aparência humilde, mas uma eficiência e fluência verbal estonteantes, se esforçava para atender o telefone e registrar pedidos, fazer contas, preparar trocos... Uma chata liga. Nunca deve ter ouvido falar em comida chinesa. O coitado tem que recitar todo o cardápio e ainda explicar do que se trata cada prato. Quando acabou de explicar, a chata desligou sem fazer um pedido sequer. De lados opostos do balcão, se olharam e riram. Riram muito. – Eu não acredito, ela te fez falar isso tudo e não pediu nada? E ainda está rindo? Você é um santo!

Madrugada de sexta-feira no 102. Aquele dia foi duro, como todos os outros. As mesmas ruas, as mesmas caras, o mesmo ritual. Há muito tempo nada mudava na vida daquela mulher que não tinha muito do que se queixar. A casa estava em ordem; as contas, pagas em dia; o trabalho, estável; a vida, sem muita pressão; comida, na mesa; todos, vivos. Também não tinha muito o que comemorar. Vivia uma vida em que absolutamente nada acontecia. As novidades se limitavam a um acidente de trânsito num dia; uma briga na vizinhança, noutro; pendengas familiares; descontos no contracheque. Os 20 anos haviam sido frenéticos, a única explicação para tamanho marasmo aos 30. Já seria a hora de esperar a morte chegar? Alcançara a idade avançada precocemente?

Almoço de sábado no 602. O macarrão ao sugo esfriava no prato. O cheiro do feijão da vizinha fazia sua barriga roncar. O aspecto do macarrão do dia anterior fazia seu estômago se contorcer. Precisava respirar devagar ou seu esôfago saltaria pelas córneas indo fazer companhia aos fiapos de macarrão que boiavam no molho vermelho ralo e frio. Um nojo. Lembrou da comida gordurosa do restaurante próximo ao escritório. Torcia para a segunda-feira chegar logo. Ao menos a lembrança do almoço no meio do expediente, trazia algum bem-estar para o começo do final de semana que se arrastaria impiedoso como as gotas que sempre caem da torneira do banheiro ao lado do quarto de um insone desesperado com as primeiras luzes do novo dia.

Sábado à noite no 602. Todos os apartamentos daquela coluna estão apagados. No dele, apenas a luz do monitor está acesa. Está há mais de duas horas num chat. Não conseguiu manter um diálogo por mais de dois minutos com nenhuma mulher. Devem perceber seu desespero. Sua ânsia. Seu pavor de enlouquecer ou morrer sozinho naquele quarto. O tempo está passando. Sente o peso do tempo a cada minuto e sua mente é um disco arranhado repetindo o mesmo mantra triste a cada fração de segundo. Ouve um estampido próximo. Abaixo. Erra os botões do teclado com o susto. Parece um disparo. Suas pernas doem ao tentar se levantar para ir à janela. Desiste. Tenta conter a respiração ofegante, talvez pelo susto, talvez pelo esforço de tentar se levantar. Fica em silêncio, mas nenhum som, a não ser o das televisões dos vizinhos, se ouve. Volta a digitar.

Sábado à noite no 102. Cansou. Não suportava mais. Esperava acontecimentos. Então, quando acontecia, era festa em outro apartamento... Nada como um dia após o outro para perceber que nada mais estava guardado para ela. As surpresas da vida vieram todas. Não havia mais paciência dentro dela. A rotina e o tédio haviam se instalado de mala e cuia e corroíam seus ossos, órgãos e tecidos. Desta vez, ela seria a novidade para outras pessoas como ela, que dependiam das desgraças alheias para ter o que contar. O pequeno revólver de seu pai – deixado sob sua guarda por ser a pessoa mais calma e confiável da família – foi carregado e disparado. Acabou tudo. O tédio, a rotina e qualquer chance da novidade que insistia em não aparecer e talvez até já tivesse dado meia volta, é bem verdade. Pouco tempo depois, os paramédicos desistiriam de reanimá-la. Chegaram tarde. Deviam ter tentado em vida.

Sexta-feira à noite no 402. Seu pedido ficou pronto. Voltou para casa. Ao abrir o pacote. Além da caixinha de comida, dos palitos, do biscoito da sorte, havia uma outra caixinha com dois rolinhos primavera e molhos agridoces. Devorou-os. Pegou o telefone. O atendente respondeu. – Olha, os rolinhos, foi muita gentileza sua, estavam deliciosos. Muito obrigada. – Você gostou? Que bom. Volte sempre.
Ele tinha se comovido, ninguém jamais havia reparado no seu esforço em atender bem clientes chatos. Teve vontade de agradecer a atenção. Por isso, a cortesia.

A ilustração que anima esta coluna é de Wagner Paula. Thanx, man!

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