quinta-feira, 19 de maio de 2011

oS livRO do MEC

Quando pensamos que já vimos tudo, surge no cenário brasileiro mais uma novidade assombrosa. No final do primeiro bimestre de 2011, chegou às escolas públicas do Rio de Janeiro, e provavelmente de todo o país, o novo livro didático adotado pelo Ministério da Educação.
Trata-se de um exemplar por série, volume único, abrangendo as diversas disciplinas estudadas pelos alunos.
A esta altura, o leitor deve pensar que o motivo do assombro foi a chegada tardia do livro às escolas, pois, para efeito de ensino de jovens e adultos (em que cada série dura um semestre) a entrega dos livros no final de abril é praticamente uma piada.
A situação piora um pouco mais se mencionarmos que o material foi entregue aos alunos e não aos professores. Muitos destes tomaram conhecimento da existência do tal livro ao entrarem em sala na primeira aula do segundo bimestre e serem surpreendidos pelos alunos perguntando em que página deveriam abri-lo para acompanhar a matéria. Porém, as surpresas não param por aí.
A autora do conteúdo referente à língua portuguesa, Heloísa Ramos, traz para a sala de aula uma nova versão do “Samba do Crioulo Doido”. Baseada na sua interpretação de estudos linguísticos, ela estabelece relações entre “classes sociais que têm mais escolarização”, ou “classe dominante”, que, enquanto usuárias da norma culta ou linguagem formal, utilizam-se da língua como um recurso político.
E, do outro lado, as “classes sociais menos escolarizadas”, usuárias da “norma popular”, ou linguagem informal, sendo, por isso, vítimas de preconceito social ou “preconceito linguístico”. Nas palavras da autora, tais classes vitimizadas são compostas pela maioria dos brasileiros. [Unidade I, Capítulo I, p. 12.]
A grande confusão começa quando a autora resolve explicar a diferença entre linguagem formal e informal e, a seguir, exemplificá-las. De acordo com o livro, a norma culta, ou discurso formal, deve ser empregada quando escrevemos um requerimento ou ao conversarmos com uma autoridade, por exemplo. Mas quando escrevemos um bilhete a um amigo ou conversamos com as pessoas de nossa família de maneira espontânea podemos ser informais. Até aqui, tudo bem!
O problema reside nos exemplos. De acordo com a página 14 do livro, é comum, na linguagem informal, as pessoas dizerem, por exemplo, Minha irmã viu ele lá. Enquanto, na norma culta, a frase seria: “Minha irmã viu-o lá”.
Na página seguinte, é dito que concordâncias de gênero e número ocorrem na norma culta, pois, na norma popular, é possível falar Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado.
Mas, nem tudo está perdido! A generosa e solidária autora aconselha o aluno que preferir utilizar a norma popular a ficar atento porque, dependendo da situação, ele corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico.
A autora acerta ao comentar que, “como a linguagem possibilita acesso a muitas situações sociais, a escola deve se preocupar em apresentar a norma culta aos estudantes”. Mas escorrega, quando admite a possibilidade do emprego do que ela considera linguagem informal quando for necessário, e cai, quando confunde linguagem informal com erro gramatical e linguagem formal com português rebuscado.
Os sofismas, os excessos de rebuscamento, os exageros de eloquência, os jargões profissionais, esses, sim, são práticas e estratégias de dominação política e social pela língua. Estamos a um passo de adotar um discurso inversivo, típico de um complexo de superioridade arrogante que pretende passar a mão na cabeça do pobrezinho que fala errado porque não tem capacidade de aprender o que é correto. E, pior, para mais tarde atribuir ao professor a incompentência linguística desse aluno.
Ao ler este livro, eu é que me senti vítima de um preconceito linguístico! Em que classe se encaixam as pessoas que, como eu, concordam o substantivo com o verbo, com o adjetivo e com artigo em qualquer situação, na favela ou no asfalto, com pobre ou com rico, no trabalho ou em família? Em que classe se encontram as pessoas que, como eu, dizem “eu a vi lá” ou “os livros são interessantes”?
Em que classe se encaixam os humildes que, como Cartola, estudaram até o primário e são capazes de parir obras-primas de simplicidade e correção inalcançáveis até para os maiores catedráticos? Somos todos desclassificados para o MEC?
Eu cresci numa família de gente pobre que espremia cinco pessoas em um apartamento de conjunto habitacional, onde conviviam outras famílias tão pobres quanto a nossa. A criançada toda ia à escola e aprendeu a ler e escrever fazendo cópias das lições do livro como dever de casa. Repetindo no caderno vinte vezes as palavrinhas que errava no ditado para não errar mais. Decorando a tabuada. Procurando as palavras no dicionário porque os pais usavam o “pai dos burros” como antídoto contra a preguiça. E as famílias não ganhavam um centavo a mais por isso!
Fomos crianças pobres que não ganharam uniforme escolar, nem livros e pagavam passagem se precisassem estudar longe de casa. Os pais que podiam contribuíam com a “caixa escolar” para ajudar a escola a comprar o que o governo não mandava. A criança que adoecia e se ausentava da escola repetia de ano. Entrávamos de férias no começo de dezembro e só voltávamos em março.
No entanto, escrevemos e falamos hoje muito melhor do que as gerações que nos sucederam com todas as facilidades, com todos os privilégios, com todas as pedagogices, aprovações automáticas e com a extinção do dever de casa.
A norma culta é a natural para mim, mesmo sendo pobre. Tenho escolaridade, mas não sou da classe dominante, pois sou professora. Mesmo ensinando uma língua estrangeira em escolas públicas, é com a norma culta da língua portuguesa que me comunico com meus alunos e exijo que se comuniquem comigo.
Se a linguagem é formal ou informal, erros de gramática são e sempre serão corrigidos, independente de modismos ou do livro didático adotado pelo governo. Porque a linguagem informal, dona Heloísa, aquela que usamos para escrever um recado ou conversar com um parente, não tem que ser gramaticalmente incorreta!

Veja o tal livro com seus próprios olhos: http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/V6Cap1.pdf

Escritor, Carlos Eduardo Novaes, tira um sarro da escolha do MEC:

http://www.jb.com.br/sociedade-aberta/noticias/2011/05/16/livros-pra-inguinorantes-por-carlos-eduardo-novaes/

8 comentários:

Professor Renato disse...

Sarinha, usamos esse livro lá no Pernetta!O pior: os manuais do professor lá estão! Peguei um por acaso... o problema não é o texto, a discussão neste espaço é correta e coerente ( o livro é pro EJA e há distorsão série idade nele. Se o docente achá-lo ruim, basta pular o capítulo ou, como cansei de fazer numa gramática tradicional,criticá-lo com os alunos.
Mas o buraco aí é mais embaixo: Nem o povo da escola percebeu que esses livros são consumíveis, ou seja: ano q vem o MEC compra a MESMA quantidade de livros que esse ano, no mínimo... Não sou ingênuo. A FTD, Ática, Scipione, Moderna, Positivo dominaram o mercado por muito tempo.
A Global,por outro lado,era editora dos livros socialistas de Marx, Engels, Lênin...
A Editora Saraiva, que tinha 15% do seu capital em propriedade de capital estrangeiro, vendeu mais 2,6% ao Internacional Financial Corporation – IFC,órgão financeiro do Banco Mundial; as editoras Ática e Scipione foram
compradas pelo grupo Abril e pelo Havas, da França, sendo que
recentemente essas editoras ficaram somente com a Editora Abril A Abril continua em plena transformação e, com o habitual pioneirismo, anunciou a sociedade com o grupo de mídia sul-africano Naspers, em maio de 2006, que passou a deter 30% do capital do Grupo, incluindo a compra dos 13,8%que pertenciam aos fundos de investimento administrados pela Capital International, desde julho de 2004; a Editora
Moderna, em 2001, foi comprada por outra poderosa multinacional, a
espanhola Santillana.
E a polêmica dos gramatiqueiros x linguistiqueiros? É prus bobo...

sara disse...

Oi, Renato!

Interessante sua abordagem, mas, para mim, o nome da editora não é tão importante quanto o conteúdo do seu livro didático.

Qnto ao Manual, cansei de perguntar no Pernetta se havia um livro do professor, e as coordenadoras pedagógicas disseram q não. Talvez, nem elas saibam! Na outra escola onde leciono, esse manual não existe.

Mas, mesmo assim, obrigada por avisar. Vou procurar por lá e, assim q encontrar, avisarei para os outros professores q também procuraram o Manual do Professor e não o encontraram.

Sempre achei a discussão gramática x linguística, meio fora de propósito, até me deparar com um livro didático onde lê-se: “'Mas eu posso falar ‘os livro?’'.'Claro que pode.'"

Quando chega a esse ponto, creio q cabe a discussão!!!

Unknown disse...

afiada como sempre, sara, você toca numa ferida bem pertinente: essa diferença de facilidades entre as gerações.
tanto acesso a informações e condescendências educacionais (que beiram a coitadismo) estão nos levando aonde?
antigamente, a gente enfrentava as dificuldades, tinha medo das consequências de nossas ingerências e displicências.
e agora???

gostaria de dizer que o professor renato trouxe informações muito úteis no seu comentário.

marco homobono disse...

afiada como sempre, sara, você toca numa ferida bem pertinente: essa diferença de facilidades entre as gerações.
tanto acesso a informações e condescendências educacionais (que beiram a coitadismo) estão nos levando aonde?
antigamente, a gente enfrentava as dificuldades, tinha medo das consequências de nossas ingerências e displicências.
e agora???

gostaria de dizer que o professor renato trouxe informações muito úteis no seu comentário.

marco homobono disse...

eu gostaria de peguntar ao professor renato os motivos que o levaram a devassar o perfil acionário das atuais editoras brasileiras.
eu como sou adepto de uma teoria conspiratória, começo a desconfiar que grupos editoriais com um maior controle estrangeiro ficam, como posso dizer?, com uma ideologia mais flexível, e com uma chance maior de mostrar mais disso do que aquilo, de deixar o big brother com o seu "ministério da verdade" trabalhar mais à vontade.
é possível isso?
ou eu estou delirando???

sara disse...

Markin,

acho q no Brasil essas editoras teriam um pouco mais de dificuldade de fazer valer as conspirações, uma vez q o público leitor é reduzidíssimo.
Sabe aquela piada dos terroristas tentando realizar um atentado no Rio, mas tudo dá errado???

TS disse...

Sara, eu gostaria de comentar seu txt, mas meu tempo é ínfimo!

não trabalho em sala de aula (deusmelivre) mas no momento digo duas coisas:
- O brasileiro, culto/inculto, peca na linguagem SEMPRE; ao contrário de nossos primos d'além-mar, "comemos" letras, sílabas, preposição, pronomes, qdo não o VERBO da ação!
Erramos em concordância, verbal e nominal, à amiúde. C/ a internet, piorou. Até na TV leio erros crassos. E sem o incentivo à leitura (boa!), não há como fazer a meninada ler/falar/escrever corretamente, qdo os próprios professores NÃO LÊEM por falta de hábito.
P/ piorar, o gov. dá uma mancada dessas? A culpa é editorial??

- No momento, dois temas me incomodam, e me envergonham: a cartilha contra a homofobia - aprovada e recém-saída do prelo - e o txt provisório APROVADO na Câmara p/ o novo Código Florestal (lembre-se, vivo em meio rural)

Devo parar por cá... os interesses em jogo, tanto num como noutro caso, são muuuuuitos! Fazer o quê?

Beijos, Tinê

Sara Simões disse...

No último dia 24 de maio, o programa OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, foi ao ar discutindo o livro em questão.
Um dos convidados, Sr. Deonísio da Silva, escritor, professor e pró-reitor de cultura e extensão da Universidade Estácio de Sá, fez um comentário q me pareceu mto interessante.
Segundo o professor, o ensino da língua portuguesa nas escolas deveria primar pela democratização da norma culta, ao invés de promover uma inclusão sem esforço. E concluiu o pensamento citando Machado de Assis q, vindo de origem pobre, precisou aprender a norma culta para se tornar um dos maiores nomes da literatura nacional.
Sem dúvida, é um argumento que merece consideração.