sábado, 30 de abril de 2011

Para o resto de nossas vidas

“Até que enfim é sexta-feira, vou entregar essas últimas encomendas no Centro e depois encontrar os amigos pra começar bem o final de semana.”
Tudo se encaminhava para um final de semana tranquilo. Dentro do carro, já conseguia visualizar o fim da noite no barzinho de sempre e, se o tempo ajudasse, até uma praia no sábado pela manhã. Bastava chegar ao Centro, entregar todas as peças das máquinas aos devidos escritórios e estaria livre.

“Ai, estou tão nervosa. A primeira etapa do processo seletivo foi tão difícil, nem acredito que consegui passar. Agora, não posso estragar tudo na entrevista. Que Deus me ajude!”
A entrevista estava marcada para as 16 horas. Imaginava os outros candidatos agendados antes dela. Para garantir que nada desse errado, estava saindo de casa com duas horas de antecedência.

“Pô, aí, não to a fim de assistir aula hoje. Olha esse sol! Vamos vazar! Minha mãe não tá em casa, vamos pra lá. Mas, ó, nada de passarela. Quero aventura hoje. Vamos atravessar a Brasil por baixo. Aposto que tu não chega primeiro do outro lado...”
Na mente, apenas a vontade de se divertir, de dar uns amassos longe da presença da mãe e a sensação de imortalidade que a juventude, aliada à total falta de responsabilidade e bom senso, pode oferecer.

Enquanto a professora passava a matéria no quadro, saíram de fininho e desceram as escadas do colégio. As merendeiras cozinhavam e a inspetora atendia uma mãe que trouxera o atestado do filho doente. O porteiro trancara o portão com cadeado e fora ao banheiro. “O portão tá trancado, mas, não tem erro, não! Hoje nada pode nos parar...”

Pularam o muro da escola. Com poucos metros de corrida, chegaram à Avenida Brasil. Na altura da passarela 16, se olharam e riram. Observavam os carros passarem em altíssima velocidade. Ele gritou para ela: “Agora, depois do ônibus!” Ela sentia seu coração disparado de medo. Mesmo assim, correu e conseguiram atravessar a primeira das quatro faixas.

No porta-mala do carro, as peças que deveriam ser entregues no Centro antes do final do expediente sequer trepidavam. Em plena sexta-feira, o trânsito estava livre, nenhuma retenção. Praticamente nenhum carro por perto. Com os olhos fixos na pista, mal podia acreditar que chegaria rápido ao seu destino. Passou pelo viaduto dos marinheiros e numa fração de segundos, uma grande explosão arrebentara seu parabrisa. No reflexo, parou o carro, mas não conseguia reunir forças para abrir a porta e sair para ver o que havia acontecido.

O coração estava disparado, a cabeça latejava, começou a achar que não havia sido uma explosão. Pensou que um corpo, provavelmente caíra do alto do viaduto em cima do carro. Olhou para um lado e viu carros parados nas pistas à sua direita. Pelo retrovisor, viu o corpo de um rapaz uniformizado, estudante da rede municipal. Do lado esquerdo, a pista de subida da seletiva também estava parada. Não conseguia ver o corpo da menina que atingira seu carro e voara por cima da mureta.

Ao ver os carros da polícia e dos bombeiros fecharem as pistas à sua frente, ela previu que não chegaria a tempo na entrevista para o emprego do qual tanto precisava. Estava há um ano desempregada. Queria ligar para o escritório, mas não tinha créditos no telefone. Enquanto os demais passageiros se erguiam e esticavam para descobrir o que acontecera, as lágrimas começaram a escorrer borrando sua pele maquiada.

Na escola, o porteiro voltara do banheiro a tempo de ver o casal de alunos pulando o muro. Quando acabou de reportar o ocorrido à diretora, ambos subiram imediatamente para tentar descobrir a que turma pertenciam os fujões e, em seguida, tentar avisar os pais. Foi então que ouviram a sirene da patrulha que acabava de estacionar diante da escola para dar a notícia do acidente. Ao ver o policial se aproximar, a diretora desejou não estar ali naquele momento.

Dentro do carro, o motorista chorava assustado. Não conseguia responder com clareza o que os policiais indagavam. Um dos bombeiros o examinou e confirmou seu estado de choque. Pensava nos planos que fazia para o final de semana segundos antes do atropelamento. Pensava estar vivendo um pesadelo.

No ônibus, o trocador percebeu o desespero da moça e puxou conversa. Minutos depois, abriu a bolsa e ofereceu o celular. A entrevista fora remarcada para segunda-feira. No escritório, todos já sabiam do engarrafamento. A notícia do acidente já estava nas rádios e na Internet.

“CASAL É ATROPELADO E 2 FAIXAS SÃO INTERDITADAS NA AVENIDA BRASIL, NO RIO, ESTA TARDE
Segundo os bombeiros, uma adolescente de 14 anos morreu no local.
Engarrafamento chega até o Caju. (29/04/2011)

4 comentários:

Johnny disse...

e tantas decisões aparentemente insignificantes podem mudar nossa vida para sempre, né?

bj!

sara disse...

O pior, Johnny, é quando nos tornamos vítimas das decisões alheias... :-(
bj

Alcivia disse...

...pior ainda é estar impotente diante das decisões e atitudes dos outros que não percebem o quanto suas verdades só são suas...
Enfim, o que nos resta é refletir e desejar que alguma coisa mude, pelo menos em nós, a partir dessa reflexão.

sara disse...

Acho q entendo o q vc quer dizer...

Mas a verdade é mais ou menos como o bom senso, né? Cada um tem o seu e usa de acordo com a própria conveniência.

Até aí, dá pra levar.

O problema começa quando usa-se a concepção que se tem da verdade (ou de bom senso, ou a falta dele) sem se colocar no lugar do outro, ou sem pensar nas consequências que pode trazer para terceiros.

Esse é o principal convite à reflexão proposto pelo texto.