Do banco do carona, ouvi sua boca vomitar barbaridades. Disse que desceria do carro e do alto de seu metro e oitenta para espancar o menino de rua que viesse sujar seu pára-brisa com aquela lavagem imunda. Um estado de choque calou minha boca. Uma covardia baixou minha face. Uma confusão tomou minha mente. Para meu deleite, os meninos passaram e nos ignoraram dentro de seu carro. Foi quando lembrou que só os carros bonitos atraem a atenção, mesmo de meninos de rua. O seu supõe falta de recursos, mesmo para meninos de rua. Uma humilhação o fez sentir preterido. Um despeito o fez cair na real. Não era digno sequer da lavagem imunda.
Do canto da sala, o vi invadir meu espaço. Vi falar, reclamar por muitos e muitos dias, nunca ouvir, exceto para criticar, ou debochar. Nada nunca parecia bom o suficiente. Uma piedade calava minha boca. Depois, um cansaço me ensurdecia. Por fim, uma irritação tomou meu senso. Quando se chega a um ponto insuportável, a mudança é inevitável. Muda-se. A força corre quente pela veia até a ponta da língua: o cuspe, a reação, o deleite. Pior do que a rejeição de meninos desconhecidos, é a da menina que se pensa conhecer.
O prazer de poder encher os pulmões de ar, esticar o corpo, ouvir sua música favorita, colocar a mochila nas costas e ir onde se quer, abrir e fechar os olhos, sem medo de atender o telefone, sem um diabo a quem carregar, sem um vampiro a chupar seu sangue, um espírito de porco a obsidiar a vida de quem só quer andar de leve por aí é a melhor sensação do mundo. Sem medo do fim de uma triste relação, seja de amizade ou qualquer outro tipo de disputa, casamento ou namoro. Qualquer coisa onde o amor não esteja presente lá e cá. Não há caminho sem ele, nem com muito boa vontade.
O bom de subir um muro e olhar sobre ele, é poder enxergar o que virá depois. O super herói não precisa terminar esfarrapado, caminhando solitário pela estrada deserta. Quando se é justo consigo mesmo, a paz é o doce alívio de um caminho de ilusões e decepções, mas repleto de sinais verdadeiros de admiração mútua e companheirismo que só as verdadeiras almas gêmeas conseguem demonstrar das maneiras mais diversas. Toda maneira de amar vale a pena, se for verdadeira.
No silêncio da madrugada, os poucos carros que passam fazem ainda mais barulho. Mas fecho os olhos hoje e durmo em paz.
Foto de Sara Simões