terça-feira, 28 de março de 2006

Tecendo asas

“Meu fá, minha fã
A massa e a maçã
Minha diva, meu divã
Minha manha, meu amanhã
Meu lá, minha lã
Minha paga, minha pagã
Meu velar, minha avelã
Amor em Roma, aroma de romã
O sal e o são
O que é certo, o que é sertão
Meu Tao, e meu tão...
Nau de Nassau, minha nação”

(“Meu amanhã – Intuindo o til”, Lenine)

É delicioso observar uma pessoa que se expressa bem. Falar bem é uma arte. Não me refiro apenas à dicção ou à voz. Aliás, como sempre, a forma nem é tão importante se o conteúdo for interessante. O mesmo se aplica à letra e ao texto, mesmo hoje em tempos de teclado e monitor. É a articulação entre a idéia e as palavras que me encanta.

Admito que tem sido cada vez mais raro encontrar pessoas capazes disto, mas adoro parar para ouvir quem tem algo a dizer. E há aqueles que, mesmo sem ter nada a declarar, são tão convincentes que fazem o nada parecer relevante.

Desde que comecei a me interessar por literatura, percebi que os maiores autores escolhiam as palavras que melhor combinavam com o tema da história a ser contada. Se o texto relatasse a morte de alguém, palavras fúnebres já ambientavam o leitor para o desfecho que a cada linha se aproximava. Prosas de amor eram recheadas de “palavras cor de rosa”. Rubem Fonseca, por exemplo, me ensinou a escrever vários termos que via os delegados nas séries de TV usando.

O mesmo acontece com algumas pessoas à nossa volta. Podem reparar. Há pessoas que abrem a boca e, em poucos minutos, se desnudam. Nas primeiras frases, pelas palavras que escolhem, já denunciam se estão felizes ou infelizes. Doentes ou bem dispostas. Amando ou solitárias.

Mas há uma outra categoria de gente. Aquela que usa e abusa das palavras. Que ousa imprimir felicidade a uma palavra habitualmente triste. Vivifica seres inanimados. Sombreia até as lâmpadas mais incandescentes. São os poetas. Eles têm o poder de transformar o denotativo em conotativo e confundir os que dão os primeiros passos numa língua desconhecida.

Há poucos dias suei a camisa. Tentava convencer alunos, em seus primeiros passos na língua inglesa e com dicionários em punho, de que a tradução que dei para as palavras da música disposta no quadro negro, apesar de um pouco diferente da definição do dicionário, faria mais sentido se ainda houvesse aulas de literatura nas escolas. Não pareceram muito convencidos com a explicação de que o sentido literal é o apresentado nos glossários e que o bom poema brinca com as palavras, exatamente como Zeca Baleiro havia feito na música em questão, o “Samba do Approach”.

Citei vários exemplos que pude sacar na hora para mostrar a eles como os poetas se utilizam das palavras e das imagens para criar novas idéias e dar novas formas a velhas definições. A pedra no meio do caminho de Drummond, o amor “eterno enquanto dure” de Vinícius, o erro que tem vez para Leminski, a estrela cadente que se joga de Gilberto Gil e o “vigia” que cata a poesia entornada no chão ou o paletó que enlaça o vestido, de Chico Buarque. Alguns foram compreendidos. Outros, não.

Fiquei bastante preocupada. Estará surgindo uma geração de órfãos de poemas? E pior, de poesia? Se a literatura é uma janela aberta para sonhar e ampliar nossa visão de mundo, a poesia nos dá as asas para voar para fora dessa janela. Se esses meninos não sabem sonhar, esses meninos não podem voar! Que futuro árido nos aguarda...

A ilustração que melhora esta coluna é de Wilson Domingues. Thanx, Wilbor!

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