segunda-feira, 31 de julho de 2006

Acho que perdi


primeira vez
ela vinha na direção do ponto do ônibus. nunca a vi por aqui. ainda tem os cabelos molhados e os olhos inchados de sono. ela anda depressa e cabisbaixa, mas quando levanta os olhos, se depara com os meus. Tímida, desvia, mas olha de novo para se certificar. É pra você que estou olhando. Não aguenta por muito tempo e desvia de novo. Será que voltou a olhar por curiosidade ou por que também gostou de mim? Pegou a primeira condução que passou. Acho que a perdi.

segunda vez
Há semanas que não o vejo. Ele tinha o cabelo molhado, calça e sapatos pretos sociais que não combinam nada com a pólo de malha vermelha. Mas que olhos - azuis, fixos, curiosos. Ele não deve estar lá hoje. Provavelmente, nem é daqui. Devia estar no ponto, depois de passar a noite na casa da namorada...

Estou atrasada, preciso correr. Ganho a rua a tempo de tomar o ônibus. Faço sinal e, que susto, sem me ver, sobe na minha frente. Sem muita certeza, me olha pelo canto do olho e senta no primeiro lugar que encontra. Também parece surpreso. Sento à sua frente. Logo depois, me levanto. Próxima da porta, viro e o encaro. É mesmo bonito. Desço e, de fora do ônibus, vejo seu olhar me acompanhando, meio sem acreditar, mas já acreditando. Agora ele sabe. Foi bom vê-lo de novo.

terceira vez
Não é sempre que ela está aqui, mas os cabelos e os olhos estão exatamente como da primeira vez. A pressa também é a mesma. Está inquieta hoje. Virou duas vezes para me olhar. Deixo que suba na minha frente e escolha o lugar. Não há ninguém entre nós. Que bom, escolheu um banco vago. Olho no fundo de seus olhos, peço licença e sento ao seu lado. Sinto seu perfume e o frescor da sua pele. Por que esse motorista corre tanto hoje? Não pega um sinal fechado. Um amigo entra no ônibus, nos cumprimentamos. Falo qualquer coisa com ele. Nem me lembro mais. Ela me pede licença e levanta. Levanto também para lhe dar espaço e ela pisa no meu pé. Pede desculpas sem me encarar para que eu não note seu rubor. Desejo bom dia. Ela sorri e desce. Quase morri, ela me acenou de fora do ônibus.

quarta vez
Não está aqui hoje. Abro a bolsa, procuro o celular para ver se já está na hora de ele chegar. Faltam 2 minutos. Inclino o rosto para guardar o aparelho e percebo duas sombras atrás de mim. Meu Deus, é ele. Camisa branca, agora sim, combinando com os mesmos sapatos e calça pretos. A luz do sol bate no branco de sua camisa e reflete nos olhos ainda mais claros do que antes. Está conversando. O ônibus chegou. Entramos. Eu, ele, o amigo. Ele fala com alguém dentro do ônibus. No fundo, há três lugares, sento-me ansiosa, o amigo o deixa passar, ele se aloja ao lado da moça no canto oposto com quem falara ao entrar. Ao meu lado, senta seu amigo. O ônibus arranca e ele me observa pelo reflexo do vidro à nossa frente. Tento prestar atenção na conversa de outros passageiros. Levanto e desço sem olhar pra trás. De dentro do ônibus, ele me acena com ar pesaroso, devolvo um aceno triste.

última vez
Desanimada, chego ao ponto sem a esperança de vê-lo. Já fazem vários dias. Dois ônibus depois, ele chega, me vê e não me encara. Abaixa a cabeça, finge contar moedas. Pegou a primeira condução que passou. Sem me olhar, entrou na lotação e partiu. Sem acenos. Acho que o perdi.
A arte que ilustra esta coluna é de Wagner Paula. Thanx, man!

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